O Portugal pequeno-corrupto

Importa chamar a atenção para um outro tipo de corrupção, sem a confundir com a anterior. Refiro-me a uma corrupção branca, muitas vezes inconsciente, que permeia a nossa forma de nos relacionarmos uns com os outros e com o Estado, e da qual poucos de nós se podem eximir.

Se a existência de qualquer norma implica a possibilidade de a corromper, a noção de “bem público” faz da corrupção mais do que um delito: passa a ser uma agressão à comunidade. É muito longa a história da corrupção e os historiadores têm-se interessado cada vez mais por ela, recuando até à Antiguidade. A história é sempre um produto do presente, e os últimos anos ficaram marcados por uma consciência cada vez mais aguda dos desafios que o neoliberalismo, por um lado, e as várias formas de populismo político, por outro, levantam ao Estado social e à democracia. Não espanta que o problema da corrupção esteja hoje no centro do debate político e académico.

Portugal não é excepção. A sucessão de processos judiciais envolvendo acusações de corrupção a banqueiros, empresários e políticos tem alimentado o jogo mediático, e com ele a percepção pública do problema, com o tema da corrupção a transformar-se em arma de arremesso no combate partidário, tanto à esquerda como à direita. Chegámos assim a um paradoxo, que não é exclusivamente português: um tema que todos consideram central para a “qualidade da democracia” acaba por ser instrumentalizado por uma retórica que não só atenta contra princípios democráticos básicos (a honestidade intelectual, o respeito pelo adversário) como serve mesmo para mascarar opções políticas que são igualmente contrárias ao interesse público.

A pulsão para subverter normas e aproveitar brechas nos sistemas legais é universal. Aquilo que me parece distinguir o caso português não é tanto a quantidade ou a qualidade da corrupção, mas uma certa incapacidade das instituições para a travar e, sobretudo, uma predisposição social para aceitar comportamentos que noutros países seriam vistos como corruptos. A proverbial desconfiança dos portugueses face ao Estado e ao vizinho do lado não é estranha a esta tolerância para com os prevaricadores.

Não quero desvalorizar a responsabilidade do Estado, e do poder judicial em particular, no combate à grande corrupção, seja dissuadindo-a por via legislativa, seja criando condições para que se faça justiça nos processos que correm em tribunal. É fundamental apurar responsabilidades na enorme destruição de valor a que o país assistiu nas últimas décadas, e que ajuda a perceber as fragilidades actuais da economia e do próprio sistema político.

Mas importa chamar a atenção para um outro tipo de corrupção, sem a confundir com a anterior. Refiro-me a uma corrupção branca, muitas vezes inconsciente, que permeia a nossa forma de nos relacionarmos uns com os outros e com o Estado, e da qual poucos de nós se podem eximir. Trata-se de uma corrupção sem corruptos, que é alimentada por uma cultura de subserviência e de silêncio, típica de uma sociedade feita de pequenas dependências e de reciprocidades interesseiras (ajudo-te hoje para me ajudares amanhã).

Os exemplos desta pequena corrupção são muitos, a começar pelo mundo do trabalho. Se olharmos para o recrutamento no Estado é impossível não ver a multiplicação de concursos públicos cujos resultados estão definidos à partida, muitas vezes condicionados por influências pessoais, quando não partidárias, e estruturalmente marcados por processos burocráticos kafkianos que ajudam a mascarar a arbitrariedade. Nas empresas e outras instituições privadas o cenário é frequentemente marcado por uma excessiva endogamia, na raiz de uma “homogeneidade” pobre que redunda numa experiência limitada do mundo, como bem observou Penelope Curtis, ex-directora do Museu Gulbenkian, em entrevista ao PÚBLICO.

Se olharmos depois para a relação que cada um de nós mantém com o Estado e com a coisa pública, o que vemos muitas vezes é uma lógica privada de utilização dos recursos públicos. É assim nos serviços de saúde, onde a multiplicação de pequenos favores (a marcação de consultas contornando listas de espera, a admissão a hospitais fora da zona de residência, etc.) conduz a uma sobrecarga que bloqueia o sistema, quando não a uma confusão entre serviços prestados a título público e privado. É assim com todas as pequenas fugas ao fisco, que no conjunto diminuem de forma significativa a massa tributável. É assim no trânsito, onde todo o tipo de pequenas infracções (estacionar em segunda fila por “breves” instantes é o exemplo clássico) tornam a circulação mais difícil. E é assim em tantas outras circunstâncias em que cada um de nós se apropria do que é de todos.

Se olharmos para o mundo dos media e da cultura, vemos também uma distorção frequente do espaço público por interesses particulares que o tornam menos plural. Desde logo quando jornalistas, curadores e académicos, por vezes pagos com dinheiros públicos, escolhem destacar, programar ou escrever sobre o trabalho de artistas ou pensadores a quem os ligam relações pessoais ou de escola, sem terem em conta critérios mais objectivos.

Aludi a três aspectos em que se manifesta esta corrupção sem corruptos, mas os exemplos poderiam multiplicar-se. É fácil atribuir a responsabilidade aos outros, a uma classe em particular, às “chefias” ou a qualquer outra categoria abstracta. Mas a verdade é que incorremos demasiadas vezes em comportamentos deste tipo, quase sempre sem consciência de estarmos a corromper ou a ser corrompidos. Em alguns casos fazemo-lo como resposta resignada às ineficiências do sistema, como quando recorremos a uma cunha para conseguir tratamento para alguém doente, ou até com boas intenções, como quando prescindimos de uma factura por generosidade para com alguém mal pago.

Embora as consequências destes comportamentos sejam insignificantes quando os tomamos individualmente, o seu efeito acumulado ajuda a explicar algumas das fragilidades do tecido económico português e contribui de forma significativa para perpetuar as desigualdades que fracturam a nossa sociedade. Por outro lado, as consequências desta corrupção estrutural vão muito além dos seus efeitos directos. A pequena corrupção normaliza a grande e facilita-a, desde logo porque alivia a consciência dos que a praticam e torna mais difícil condená-la e combatê-la.

A corrupção transformou-se num dos temas favoritos de um populismo político e mediático que vai minando a confiança dos cidadãos no Estado e nas instituições, mas também uns nos outros, como se vê hoje nos EUA. Se é importante que as democracias coloquem o combate à corrupção no topo da agenda política, não o é menos que as sociedades democráticas reforcem esses laços de confiança. No caso português, a pobreza, os resquícios de uma sociedade clientelista e as limitações de um Estado endividado e pouco eficiente tornam o desafio ainda maior e exigem que cada um de nós cuide melhor do que é de todos.

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