Você gosta de pretos?

Sob uma dada perspectiva ideológica e um prisma que privilegia a exuberância, a arrogância e agressividade, André Ventura será, inevitavelmente, o vencedor de todos os debates.

A disciplina de Português de 11.º ano contempla o tema do discurso político, encaixado, por norma, na retórica do Pe. António Vieira e dado a mata-cavalos, advertindo para a dimensão ética e social do discurso. Acontece que o discurso político, com as suas regras argumentativas, adopta práticas diversas, entre as quais a sua dimensão de debate de ideias. Esta vertente, que mais poderia seduzir o interesse de alunos aborrecidos, é normalmente descurada, embora a sua importância como género textual híbrido (engloba, com toda a certeza, a teatralidade, a retórica, a demagogia e a técnica da manipulação, o suporte ideológico, a arte performativa da linguagem, a prosódia, o manuseamento de dados e factos concretos, a aproximação e afastamento da exigência de verdade, etc.) se justifique, só por si, face ao maior anacronismo da retórica política pura. Talvez fosse importante integrar nos programas de Português o visionamento de debates televisivos, interpretados com base na prestação dos contendores, mas ainda no papel (nunca isento) da moderação e na apresentação técnica (o modo como o realizador – também ele dotado de parcialidade – escolhe os ângulos e as câmaras de filmagem, elege os tempos de filmagem, opta por certo enquadramento, e selecciona toda a linguagem visual e corporal que um “combate” reúne).

Isto decorre do debate televisivo entre os candidatos João Ferreira e André Ventura, transmitido no passado dia 2 de Janeiro. O processo resulta, para a maioria dos cidadãos, de forma natural (porque instituído e legitimado por um canal televisivo), mas ele é perverso, pois assegura, de forma directa, a uma boa parcela da opinião pública pouco experiente e pouco lúcida a inevitável percepção de que a engenharia política do espectáculo funcionou às mil maravilhas e que, seja qual for o confronto entre dois ou mais contendores, tudo tende a responder à pergunta “quem foi o vencedor?”, como se as divergências de teor ideológico não tivessem mais a que responder do que ao resultado de uma corrida de cavalos.

Para começar, convém dizer que, sob uma dada perspectiva ideológica e um prisma que privilegia a exuberância, a arrogância e agressividade, André Ventura será, inevitavelmente, o vencedor de todos os debates. Porque, repare-se, André Ventura não discute ideias, mas aquilo a que elas estão associadas, isto é, as matérias para que elas reenviam e que lhe outorgam determinado tipo de vantagem. Se a ideia em debate for a Saúde, muito naturalmente brandirá o seu favorecimento aos serviços privados, trará à colação o mito da nacionalização do sector e, num acesso de free speech paradoxal, ainda imputará à esquerda os rebates do SNS; se a ideia a debater for a Imigração, é natural que branda a bandeira de um nacionalismo que veja no acesso dos imigrantes a certos privilégios uma ameaça, mas que, em contrapartida, ressalve a sua liberalidade, dado até ter amigos pretos, alguns dos quais a trabalhar consigo. Na realidade, a ideia não interessa, mas aquilo que ela permite obter.

E, para além de não discutir ideias, Ventura é mestre em não permitir que os adversários apresentem as suas – o ruído que provoca, seja por interromper, exteriorizar trejeitos e usar com perícia uma linguagem gestual que esvazia e banaliza o discurso alheio (porque sabe como o auditório é propenso a estímulos visuais que se sobrepõem à memória verbal), torna-se suficiente para desarmar quem crê que somente a razão se deve impor no debate político. Ventura não tem nada a perder e um homem que não tem nada a perder, cujo sentido de decência é relativizável, só tem a ganhar. Usa silogismos básicos e tão insultuosos que, à força da sua reprodução, se instalam na nossa paisagem mediática e cultural: todos os comunistas são defensores de ditaduras, a esquerda é, por natureza, adepta de regimes totalitários e não se importaria de instaurar um regime que replicasse a Coreia do Norte em Portugal, começando por nacionalizar tudo o que é empresa, os imigrantes são uma praga predadora de impostos dos contribuintes, os membros da etnia cigana vivem na subsidiodependência (na verdade, um estudo revela que o peso das famílias ciganas beneficiárias do RSI é de 3,9%, relativamente ao total das famílias beneficiárias desse rendimento), e outras pérolas.

Por outro lado, o PCP já deveria ter erguido outros telhados, virando a página da condenação incondicional de regimes totalitários ou práticas pouco sustentáveis (mesmo quando Cuba foi uma promessa, entretanto perdida, de verdadeiro idealismo comunista). Até porque, se o PCP o fizer, por mais que a desonestidade dos detractores jogue no campo da irracionalidade durante mais uns anos, poupará os seus candidatos – quase sempre impolutos – a uma humilhação desnecessária e a uma fragilização contínua, tanto em debates como na palavra oficial e sentenciosa dos “cientistas” políticos.

Não vai ser fácil a nenhum candidato demonstrar o que quer que seja perante o narcisista André Ventura: é que ele, tal como os seus apoiantes, não ouve nada para além da ficção das suas razões primárias, para evitar discutir problemas que levam muito tempo a resolver – o seu auditório prefere narrativas curtas, resumos. O posicionamento de Ventura, nos debates, é o de quem se despreocupa com o que defende, mas dilata ruidosamente o que ataca. E, numa sociedade do espectáculo, tem os media a seu favor. Veja-se o favor que lhes fez a moderadora deste debate, por se escusar a moderá-lo.

Mas tudo isto importa tentar explicar aos alunos, para que percebam que a vida não se resume a apontamentos, mas a muito mais. E explicá-lo, seja de que forma for. Dizendo-lhes, por exemplo, que um demagogo é um indivíduo que convive bem de mais com as suas ideias, porque não se fixa em nenhuma, e nunca tem dúvidas, já que abdica de defender as ideias com rigor – a contradição é o momento de escapar para outra fracção da ideia ou para um assunto paralelo. Ao contrário, quem busca na razão a licitude do que diz, depara-se frequentemente com hesitações: chama-se a isso pensar e colocar o pensamento sob o escrutínio da ética. É o velho problema da esquerda.

No célebre diálogo entre Rayber, um professor universitário, e um barbeiro, com que se inicia o conto “O Barbeiro” de Flannery O’ Connor, pode ler-se isto:

“Três semanas antes, enquanto lhe fazia a barba, o barbeiro perguntou-lhe:

– Vai votar em quem?

– No Darmon – respondeu Rayber.

– Você gosta de pretos?

Rayber deu um salto na cadeira. Não contava ser abordado de um modo tão brutal.”

Há imensas pessoas que fazem este tipo de associação. Não vale a pena convencê-las de que podem estar a ser preconceituosas ou facciosas. As ordens dadas a certos militares são as de não deixarem qualquer sobrevivente. Muito menos a razão, essa besta que nos obriga a pensar.

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