Uma oportunidade para um novo normal da Epidemiologia

Precisamos de mais epidemiologistas, com um pensamento técnico afunilado na análise, pese embora amplo na interligação com outras áreas do conhecimento, que estejam mais capacitados para comunicar com os media e as diferentes audiências. Pela nossa saúde, é essencial a reflexão sobre esta oportunidade para um novo normal da Epidemiologia.

Na Saúde Pública, mais do que nunca reconhecida por todos como algo estruturante da Sociedade em que vivemos, existe uma área científica central que ganhou um novo fôlego no léxico popular – a Epidemiologia. Um dos efeitos colaterais da pandemia foi o súbito salto entre um estado de clandestinidade desta ciência para um outro em que a epidemiologia passou a ser conversa de café. Todos queremos interpretar números, refletir sobre as diferenças entre a covid-19 e a gripe comum, analisar taxas de letalidade ou, em alternativa, a mortalidade por cem mil habitantes. Debatemos sobre a eficácia das medidas de confinamento, a pertinência do achatamento da curva ou, até mesmo, sobre o sacrossanto indicador Rt. Este crescente protagonismo deverá ser acompanhado por uma discussão sobre a oportunidade para um novo normal da epidemiologia na nossa sociedade. Talvez possamos começar por reconhecer algumas limitações da Epidemiologia ao dia de hoje e eventuais soluções. Contribuo assim com três breves reflexões:

1. Pensamento fora do silo

A investigação epidemiológica exige um trabalho de ourives para isolar a causa-efeito de um dado fenómeno em saúde pública. Quando Richard Doll e Bradford Hill provaram irrefutavelmente que o tabagismo causa cancro do pulmão foi o culminar de um elegante processo de isolamento da causa (tabagismo) e do efeito (cancro do pulmão). Não há outros fatores que expliquem a relação observada. Uma investigação que não isole em silos as causas e os efeitos configura o pesadelo de qualquer epidemiologista – é inválida ou inconclusiva. Acontece que frequentemente a realidade dos fenómenos requer um pensamento de maior amplitude. Uma determinada intervenção em saúde pública pode efetivamente causar múltiplos efeitos. Nesta pandemia, por exemplo, deparámo-nos com os efeitos psicológicos do confinamento, ou as questões éticas relacionadas com o uso compulsivo de uma máscara ou de uma app. Torna-se necessário que a epidemiologia do novo normal, não comprometendo a robustez dos métodos, tenha que se preocupar com outros efeitos, inclusive os não relativos à saúde pública. Para tal deverá sair do silo “mais clássico” e expandir a sua rede de contactos, fortalecendo o seu trabalho com outras áreas do conhecimento, como a psicologia, a sociologia, a ética e o direito; e melhorar a forma como comunica, o que me leva à segunda reflexão.

2. Mensagem que passa

Os decisores têm procurado o conhecimento dos técnicos para tomar decisões face a esta pandemia. Esta aproximação sem precedentes suscitou uma série de desafios. Os epidemiologistas, que têm o ofício de explorar o que é factual e possível em saúde pública, depararam-se nesta crise com diversas dificuldades – um problema novo, com uma abrangência, gravidade e complexidade não usuais, a urgência de respostas rápidas, a dependência de comportamentos humanos não previsíveis e, por fim, a incerteza sobre os dados, exíguos e inconsistentes. Esta situação dificultou a existência de respostas taxativas sobre a realidade da pandemia e, sobretudo, sobre o seu futuro. Acresce a esta dificuldade o estilo de comunicação. O epidemiologista, tal como qualquer cientista, socorre-se de um vocabulário objetivo para retratar um mundo ambíguo, por outro lado, o decisor político frequentemente usa de semântica ambígua para fazer face a um problema objetivo. Em 1993, o governo Inglês desafiou a comunidade científica para melhor explicar o que era o bosão de Higgs (vulgo “partícula de Deus”), ao qual obteve uma eficaz metáfora de uma festa partidária que metia Margaret Thatcher a fazer de bosão. Nesse caso, a mensagem técnica passou em transfigurada metáfora, passível de ser entendida por todos. Esta desafinação crónica nos estilos de comunicação deve ser revista no novo normal, em que se pretende que em situações de crise, sejam elas quais forem, a mensagem passa.

A comunicação social também tem a este respeito um papel muito importante, pelo que deve atuar como um veículo de informação de qualidade que necessariamente influencia a opinião pública. Uma maior proximidade, responsável, da epidemiologia no novo normal aos meios de comunicação é por isso muito desejável, o que me leva à terceira e última reflexão.

3. Preparação não enviesada

O conselho e o comentário epidemiológico devem ser reservados a quem tem a formação adequada para tal. É também por isso que é necessário continuar a apostar na formação em epidemiologia no nosso país. Caso se observem os livros e os cursos de epidemiologia, pouco tem sido dedicado a surtos e à dinâmica das doenças infeciosas. Existem causas para isto, nomeadamente um maior foco de atenção da sociedade e da ciência nas doenças crónicas não transmissíveis. Independentemente das causas, julgo neste momento haver uma preparação do epidemiologista que de certo modo está enviesada e que urge ser corrigida. Parece ser indispensável haver um maior reconhecimento e especialização neste ramo específico da epidemiologia, para que todos aqueles que investigam, aconselham e comentam sobre epidemias estejam mais bem preparados.

Precisamos de mais epidemiologistas, com um pensamento técnico afunilado na análise, pese embora amplo na interligação com outras áreas do conhecimento, que estejam mais capacitados para comunicar com os media e as diferentes audiências. Pela nossa saúde, é essencial a reflexão sobre esta oportunidade para um novo normal da Epidemiologia.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar