Falta-nos saber muito sobre as vacinas da covid-19 que tanto queremos

Há mais de 40 vacinas para a covid-19 em fase de ensaio clínico, e centena e meia que ainda nem chegaram a essa fase. Vamos tomar algumas delas de certeza, ainda que permaneçam muitas dúvidas.

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LUSA/WU HONG

Apesar de se terem tornado um dos principais temas da conversa global, falta ainda saber quase tudo sobre as dezenas de vacinas para a covid-19 que estão neste momento em desenvolvimento. Quão eficazes são, quanto tempo dura a imunidade, se são seguras em todos os grupos populacionais (diferentes idades, por exemplo) e quais os desafios que será preciso enfrentar para as levar até ao ponto mais remoto do planeta – mantendo-as ultracongeladas até nos locais mais remotos. Aqui ficam sistematizadas algumas dessas interrogações.

As primeiras vacinas que estão a apresentar resultados são todas do mesmo tipo, são essas que vão vingar?
Não necessariamente. As vacinas da BioNtech-Pfizer, a da Moderna e a até a da CureVAC, da qual a União Europeia comprou nesta terça-feira 405 milhões de doses, são vacinas de ácidos nucleicos, baseadas na tecnologia do ARN-mensageiro (ARNm). Usam uma molécula que transporta instruções genéticas para que as células produzam uma proteína à superfície do novo coronavírus. Esta proteína não causa infecção, mas ensina o organismo a lutar contra uma eventual invasão do verdadeiro vírus. É uma tecnologia nova aplicada a vacinas, e já foi descrita como capaz de produzir “as vacinas do futuro”, porque podem ser concebidas no computador rapidamente.

Mas nunca foi desenvolvida e aprovada para utilização uma vacina com base nesta tecnologia, embora esta já exista há algum tempo – só que a investigação se tem focado em desenvolver tratamentos para o cancro do tipo dos anticorpos monoclonais. Ou até para doenças virais, como a raiva ou o Zika, por exemplo – mas, neste caso, os efeitos terapêuticos não se têm revelado duradouros, diz uma notícia na revista científica Nature.

As empresas de biotecnologia que foram notícia nos últimos tempos estão na vanguarda da investigação de novos tratamentos para o cancro e doenças virais e viram na covid-19 a oportunidade de ouro para afirmar a tecnologia do ARNm – que se sabe ter um enorme potencial, mas que está ainda a rondar os portões da maturidade. Por isso, apesar de parecerem extremamente promissoras, e as empresas anunciarem níveis de eficácia espectaculares, na cada dos 90%, não é assegurado que sejam estas as vacinas que vão debelar o novo coronavírus.

Porque é que as vacinas precisam de estar armazenadas a uma temperatura tão baixa?
Cimo explicou ao PÚBLICO Miguel Castanho, cientista do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, o ARN “é quimicamente instável, tem tendência a fazer várias reacções com outras moléculas e até consigo próprio”. Se fizer reacções, transforma-se noutra molécula, e torna-se ineficaz. “Por isso é que a vacina da BioNtech-Pfizer precisa de estar a 70 graus Celsius negativos, porque a muito, muito frio, as reacções químicas são muito retardadas.”

Para preservar o ARN das vacinas, esse é mantido dentro de bolsas de gordura, aquilo a que os cientistas chamam nanopartículas de lípidos, que também protegem o ARN de enzimas no sangue da pessoa que recebe a vacina, mas que depois de a vacina ter sido injectada se dissolvem lentamente, para não se acumularem no fígado, explica uma notícia na revista Science.

Cada empresa desenvolve a sua própria nanopartícula, num processo protegido por patente. Mas a BioNtech-Pfizer disse que a sua vacina tem de ser mantida a 70 graus Celsius negativos – o que exigiria congeladores muito potentes, ultrafrios. As outras empresas que apostam na mesma tecnologia apressaram-se a anunciar que as suas vacinas não precisam de tanto frio – basta-lhes congeladores normais, o que facilitaria em muito a sua distribuição.

Mas mesmo congeladores normais, como os que temos em casa, podem ser um desafio em países ou regiões onde o abastecimento de energia eléctrica é tudo menos uma certeza.

Será impossível distribuir vacinas que precisam de ser congeladas em países que não têm uma boa rede eléctrica?
Já existem vacinas que precisam de ser congeladas. E a vacina do Ébola, aprovada para uso em 2019, é muito exigente: tem de ser armazenada entre 60 a 80 graus Celsius negativos – algo na ordem da vacina da covid-19 da BioNtech, que exige 70 a 75 graus Celsius negativos. Mas há soluções para enviar vacinas tão exigentes até para sítios sem electricidade – o que não são, claro, é baratas.

O tecnólogo Nathan Myhrvold, que foi director de tecnologia da Microsoft durante 15 anos e hoje inventa e desenvolve os projectos de base tecnológica que mais lhe interessam, aplicou-se na resposta à necessidade de um contentor não dependente de nenhuma forma de energia, refrigerado apenas com gelo de água normal, que durasse vários dias, capaz de transportar a vacina do Ébola a locais remotos de África – onde normalmente surgem os surtos desta terrível febre hemorrágica. Os Arktek, assim foram baptizados, são leves, reutilizáveis podem ser transportados por uma pessoa, ou às costas de um burro ou outro animal, e apenas têm uma pilha para iluminar um mostrador. Parecem-se um bocado com um barril de cerveja. O problema é que custam cerca de 2000 dólares.

E quanto tempo durará a imunidade das vacinas?
Não sabemos. As vacinas que estão mais avançadas são dadas em duas doses, separadas por pouco menos de um mês. Mas simplesmente não decorreu tempo suficiente para sabermos quanto tempo dura a imunização. Na verdade, nem sabemos quanto tempo dura a imunidade natural após a infecção pelo novo coronavírus. Alguns estudos indicam que poderá ser de cerca de seis meses – mas não há qualquer certeza. Os coronavírus que há muitos e muitos anos causam doença nos seres humanos não suscitam uma imunidade longa.

Estão ser desenvolvidas vacinas de outro tipo?
Sim, há várias abordagens. Há vacinas de vectores virais, como a da Universidade de Oxford, da Johnson & Johnson ou da chinesa CanSino, que usam adenovírus geneticamente alterado para que não possa causar doença, e ao mesmo tempo produza proteínas do novo coronavírus – de forma a ensinar o sistema imunitário a defender-se da infecção pelo verdadeiro SARS-CoV2.

Estas foram as primeiras vacinas a entrar em ensaio clínico, e as primeiras a gerar entusiasmo. Na Índia, o maior fabricante de vacinas (por volume de produção) apostou tudo na vacina da Universidade de Oxford e já fabricou 40 milhões de doses desta vacina, ainda antes de haver resultados dos ensaios clínicos.

Há também vacinas que se baseiam em vírus inactivados ou atenuados, para não causarem doença, ou vacinas que usam proteínas ou fragmentos de proteínas que copiam o coronavírus, para gerar uma resposta do sistema imunitário de forma segura.

Há ainda outras vacinas de ácidos nucleicos em desenvolvimento, que em vez de ARN-mensageiro usam ADN, como o fabricante de vacinas indiano Zydus Cadilla, que começou a fazer ensaios em Julho e deve iniciar em Dezembro a fase 3. Esta vacina, em vez de uma injecção, é administrada através de um penso. Outras empresas asiáticas estão a desenvolver tecnologia de ADN, como a japonesa AnGes, em parceria com a Takara Bio e a Universidade de Osaca, bem como a sul-coreana Genexine. Estes dados são retirados do New York Times.

Vai haver vacinas para toda a gente?
Só podemos esperar que sim. A Organização Mundial da Saúde, e outras organizações de saúde pública internacional, lançaram uma iniciativa para garantir que mesmo os países pobres, nomeadamente a África. A história do HIV-sida mostrou-nos que os medicamentos antirretrovirais, que entraram no mercado em meados da década de 1990, a preços elevadíssimos, estiveram fora do alcance dos países africanos durante anos. Os africanos continuaram a morrer, enquanto a saúde e sobrevivência das pessoas com sida nos países ricos, com sistemas de saúde e seguradoras que comparticipavam os medicamentos melhorava. Só a criação de fundos internacionais para financiar a compra de antirretrovirais para África modificou a situação – e é esse modelo que se está a tentar montar agora, com o instrumento COVAX, que deverá ajudar países de médio e baixo rendimento a adquirir vacinas para a covid-19.

Não se sabe nada de concreto sobre o preço a que as vacinas para a covid-19 vão chegar ao mercado – algumas das empresas envolvidas no seu desenvolvimento disseram estar a pensar em diferenciar vários escalões, consoante o nível de desenvolvimento económico dos países. Mas só no momento se saberá.

No programa da COVAX participam 172 países, entre os quais Portugal e a União Europeia. O objectivo é fazer encomendas de vacinas antecipadas para garantir que até ao fim de 2021, haverá dois mil milhões de doses de vacinas seguras e eficazes para distribuir entre os países associados – até agora, 172 –, em especial as 92 economias com um produto interno bruto (PIB) inferior a 4000 dólares que se associaram ao programa.

Mas falta o dinheiro para cumprir este objectivo: seria necessário ter dois mil milhões de dólares até ao fim de 2020, e até agora o valor angariado ronda os mil milhões. Isto estimando que cada dose da vacina será vendida à iniciativa COVAX a cerca de 10,55 dólares (21,1 dólares por tratamento, se todas forem administradas em dose dupla), diz um relatório da organização não-governamental norte-americana Citizen.org divulgado esta semana (COVAX Choices).

Por outro lado, os países mais ricos que participam no COVAX continuam a fazer contratos com as farmacêuticas para a compra de vacinas - o que atropela esta iniciativa, pois grande parte da produção potencial terá sido já adquirida atraves destes contratos, dizem várias vozes críticas. 

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