Bruxelas defende investigação das autoridades nacionais às falhas da TAP nos reembolsos

Comissário europeu da Justiça, Didier Reynders, diz que cabe às autoridades portuguesas responsáveis pela defesa dos consumidores investigar e verificar se se registaram práticas concorrenciais desleais.

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TAP é uma das oito companhias aéreas visadas pela Organização Europeia de Consumidores Rui Gaudencio

A Comissão Europeia afirma que deve haver uma investigação das autoridades portuguesas à TAP relativamente à salvaguarda dos direitos dos passageiros, após terem chegado a Bruxelas queixas sobre alegada imposição de vales, em detrimento de reembolsos, e prestação de informações enganosas.

“Recebemos uma notificação da Organização Europeia de Consumidores [BEUC, na sigla em inglês] e a TAP foi uma das oito companhias aéreas envolvidas na discussão. Cabe às autoridades portuguesas responsáveis pela defesa dos consumidores investigar e verificar se se registaram práticas concorrenciais desleais”, afirmou em entrevista à agência Lusa, em Bruxelas, o comissário europeu da Justiça, Didier Reynders.

Segundo o responsável, foi denunciado a Bruxelas que a TAP e sete outras companhias aéreas europeias estavam a “impor vouchers, a prestar informações confusas aos consumidores sobre os seus direitos e que, por vezes, era difícil os passageiros receberem ou pedirem reembolsos em dinheiro”, no seguimento do cancelamento de milhares de voos devido às medidas restritivas para conter a covid-19.

O cenário de uma acção colectiva

“É possível que estas empresas recebam milhares de pedidos de reembolso e se não pagam em sete dias [como dita a lei] isso é fácil de compreender”, mas “se o processo de pedidos de reembolso foi, intencionalmente, dificultado ou se adiado [...] esse é um verdadeiro problema porque se está a pedir ao consumidor que seja credor da empresa e é nesse âmbito que podem existir investigações”, justificou Didier Reynders.

Por isso, “agora está nas mãos das autoridades nacionais verificarem se houve, de facto, práticas comerciais desleais”, frisou o comissário europeu que tutela a área dos consumidores, notando que a instituição apenas pode “pedir aos Estados-membros que estejam em total cumprimento da lei europeia”.

Além disso, “mesmo que haja uma correcta aplicação da lei pelos Estados-membros, não quer dizer que os consumidores serão reembolsados pelas empresas, [...] que podem não estar a cumprir as normas”, alertou o responsável. Didier Reynders ressalvou, ainda, que o consumidor “pode sempre avançar para a justiça, se possível no âmbito de uma acção colectiva”.

As declarações do responsável europeu à Lusa surgem após a BEUC, rede europeia da qual a DECO faz parte, ter apresentado queixa em Bruxelas. Na passada quinta-feira, esta organização emitiu um comunicado onde avançava que a TAP era uma das transportadoras aéreas que estava na “lista negra” dos reembolsos, tal como a Ryanair, Easyjet, Aegean, Air France, KLM, Norwegian e Transavia.

DECO visou também Ryanair, Transavia e Easyjet

Conforme noticiou o PÚBLICO, após ter reunido “milhares de reclamações de passageiros”, esta organização europeia pediu “uma investigação alargada ao sector” devido ao que diz serem “práticas desleais generalizadas” ao longo dos últimos meses. Desde o início da pandemia, afirma-se no comunicado, várias das maiores companhias europeias têm, de forma repetida, “falhado ao nível dos reembolsos de passageiros” e na prestação de informação sobre os direitos dos clientes.

Reconhecendo que a pandemia veio trazer novos desafios ao sector, a BEUC não deixa de sublinhar que “não é aceitável fornecer informação errada e enganar os consumidores sobre os seus direitos”.

Ao PÚBLICO, a DECO já esclareceu que esta foi “uma acção coordenada entre o BEUC e 11 dos seus membros”, e que, a nível nacional, foram feitas denúncias ao regulador sectorial, a Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC), sobre “as práticas promovidas pela TAP, Ryanair, Transavia e Easyjet, solicitando a sua actuação, atendendo às respectivas competências em matéria de fiscalização, com vista à salvaguarda dos interesses dos consumidores”.

“Em causa estão essencialmente práticas que desrespeitam os direitos dos passageiros, em particular no que respeita à informação que lhes é prestada e o direito ao reembolso. A informação incorrecta, a indução em erro dos consumidores quanto aos seus direitos, prestando-lhes informação parcial ou incorrecta, omitindo, por exemplo o direito ao reembolso em numerário, e a imposição de vouchers foram o cerne das denúncias”, adiantou a DECO.

Por parte da TAP, depois de ter sido questionada logo no final de Março pelo PÚBLICO sobre bloqueios da companhia aos reembolsos, a empresa afirmou que as circunstâncias eram “absolutamente extraordinárias” e que o tema estava a ser discutido a nível europeu. “Todas as companhias aéreas europeias estão a reembolsar com emissão de voucher”, referiu fonte oficial da transportadora, acrescentando que “nenhuma tesouraria, de nenhuma companhia, sobreviveria a ter de reembolsar em dinheiro”.

À Lusa, a TAP defendeu este domingo que cumpre “todos os regulamentos e legislação aplicáveis” relativamente aos direitos dos passageiros. No caso dos vouchers, realça que estes estão com uma majoração de 20% e validade alargada, e que “os reembolsos em numerário estão disponíveis quando solicitados, como aliás consta na página de internet”. A maior visibilidade, no entanto, é dada aos vouchers, que pode ser solicitado no próprio site, enquanto os reembolsos em dinheiro estão localizados em ““outras formas de reembolso” e obrigam a ligar para o contact center sendo que a própria TAP diz que este “está a receber um elevado número de chamadas”, lamentando a inconveniência que a situação possa causar.

O PÚBLICO questionou a TAP na semana passada sobre este tema, incluindo o número de voos cancelados por causa do surto de Covi-19, e, desses, quantos deram origem a vales e quantos a reembolsos, mas não teve resposta.

Processos de contra-ordenação em análise

Já a ANAC afirmou ao PÚBLICO, na sequência do comunicado emitido pela BEUC na semana passada, que está a analisar “a eventual instauração de processos de contra-ordenação”. Até ao dia 17 de Julho, chegaram ao regulador cerca de 1500 reclamações relacionadas com reembolsos de viagens das transportadoras aéreas a operar em Portugal, mas a ANAC não disponibiliza os doados por companhia.

Fonte oficial do regulador disse que tem actuado junto das transportadoras aéreas desde o início da pandemia para que o regulamento em causa (n.º 261/2004) seja cumprido, e que isso incluiu comunicações a todas as empresas que todas as disposições “se mantinham em vigor, pelo que teriam de comunicar de forma clara e transparente aos passageiros os seus direitos”. O regulador diz que tem também actuado junto das várias transportadoras na sequência de reclamações de passageiros, sem especificar.

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Bruxelas contra nova lei dos vouchers

Portugal, ao lado de outros nove Estados membros, está também na mira de Bruxelas por causa da lei dos vouchers, tendo já avançado com um processo de infracção. Em causa está o  diploma n.º 17/2020, publicado em Abril pelo Governo, que contempla “medidas excepcionais e temporárias relativas ao sector do turismo”, com uma política de reagendamentos ou reembolsos em vales por parte das agências de viagens e unidades de alojamento junto de consumidores com cancelamentos ligados ao surto da covid-19 – o sector da aviação não foi incluído no diploma.

A perspectiva de reembolso em dinheiro está contemplada, mas apenas em Janeiro de 2022 (caso o vale não seja utilizado). Assim, o diploma entra em conflito com a legislação da UE sobre direitos dos passageiros e das viagens organizada.

Em Maio, o Ministério da Economia afirmou ao PÚBLICO que estava a analisar a questão, depois das primeiras reacções oficiais da Comissão Europeia, mas que o diploma em questão “procura encontrar um equilíbrio entre a sustentabilidade financeira dos operadores económicos e os direitos dos consumidores que, não obstante o contexto actual, não podem ser suprimidos ou eliminados”.

“Estamos em diálogo com Portugal e esperamos que, tal como noutros Estados-membros, seja possível que Portugal mude a legislação e volte à correcta aplicação [das regras europeias]”, disse agora à agência Lusa, o comissário europeu da Justiça

“Se não [nada] mudar, temos sempre a possibilidade de avançar para tribunal e de pedir ao Tribunal de Justiça da União Europeia para tomar uma decisão sobre este processo de infracção”, ressalvou Didier Reynders.

"Restrições têm de ser necessárias e proporcionais”

Sobre o actual panorama de restrições de viagens na Europa por causa da pandemia, o comissário europeu afirmou ter conhecimento “de que alguns Estados-membros estão a colocar restrições às viagens a partir de Portugal e isso deve-se, obviamente, ao elevado número de casos dos últimos dias e semanas, nomeadamente [na região de] Lisboa”. Apontando que “não existe uma situação difícil em todos os locais de Portugal”, Didier Reynders apelou à adoçam de “medidas específicas e direccionadas para determinado local, onde exista um aumento do número de casos” e que se evite uma “total interdição” ao país.

“As restrições têm de ser necessárias e proporcionais”, bem como baseadas “numa abordagem científica, análise científica e na situação epidemiológica”, salientou o comissário europeu.

Didier Reynders assinalou que a Comissão Europeia vai “continuar a discutir com os Estados-membros”, garantindo que, “se for necessário, [a instituição] irá actuar se entender que certa medida não é necessária ou proporcional”. “Temos de ter a certeza que existe um tratamento igual para todas as diferentes situações”, assegurou.

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