Nova linha de apoio às autarquias pode pôr em causa programa Cultura para Todos

Este é o principal receio dos agentes do sector, que contestam o eventual desvio de fundos comunitários de um programa que estava a fazer o seu caminho.

Foto
Festival Bons Sons, em Tomar Paulo Pimenta

Por trás da aparente bondade da decisão do primeiro-ministro de colocar à disposição das autarquias uma linha de 30 milhões de euros provenientes de fundos comunitários para elas programarem actividades culturais e assim reanimarem “um sector duramente atingido pela crise” provocada pela pandemia da covid-19, emergiu um clima de dúvidas e de preocupação. De que modo a medida anunciada esta sexta-feira por António Costa virá a afectar o prosseguimento e a concretização do programa Cultura para Todos, que desde há dois anos vem sendo preparado em vários municípios das regiões Norte, Centro e Alentejo, no âmbito dos Programas Operacionais Portugal 2020, é a principal questão em aberto, levantada por várias associações do sector e também no interior do poder local.

Do lado dos agentes das artes, as primeiras reacções foram de incerteza e de preocupação, e isso mesmo foi manifestado pelo recém-criado movimento Unidxs pelo Presente e Futuro da Cultura, uma plataforma que representa várias estruturas e grupos formais e informais do sector (entre as quais a associação Rede e o sindicato Cena-STE), que depois foi secundado pela associação Plateia no pedido de esclarecimentos ao primeiro-ministro e às ministras da Cultura e da Coesão Territorial, a quem deverá caber a gestão dos fundos.

A Plateia lembra que o programa Cultura para Todos “incidia em particular sobre territórios de baixa densidade, comunidades socialmente excluídas e pessoas com deficiências e incapacidades, possibilitando-lhes usufruírem do direito à Cultura”.

Num comunicado citado pela agência Lusa, esta associação de profissionais de artes cénicas alerta para os riscos de “cortes ao financiamento de actividades culturais num contexto em que os trabalhadores do sector estão particularmente vulneráveis, sem protecção social e sem actividade”. Mas chama também a atenção para o “enorme perigo” de, através do cancelamento do projecto Cultura para Todos, se “isolarem ainda mais cidadãos que estão já identificados como socialmente excluídos”.

Também na sexta-feira, outra associação, a Acesso Cultura, exigiu que os diferentes agentes culturais sejam envolvidos em “qualquer revisão da aplicação de verbas” daquele programa comunitário do Portugal 2020. E no mesmo sentido se manifestou, ouvido pelo PÚBLICO, o programador e consultor cultural Hugo Cruz, que viu no anúncio do primeiro-ministro a criação de “uma situação muito atípica”, considerando mesmo “um desastre” a eventual concretização de cortes ou o desvio dos fundos destinados ao Cultura para Todos.

“Este foi um trabalho feito de baixo para cima, a partir das populações e dos agentes locais, sistemático, que envolveu o esforço de muita gente, ao contrário do que costuma acontecer”, acrescentou o também director artístico do festival Mexe, no Porto.

“Durante dois anos, os agentes dialogaram, em cada território, com áreas diferentes – social, da cultura, da educação… –, tiveram de partir muita pedra para pensar num projecto integrado que envolvesse as populações locais”, nota Hugo Cruz, que, na qualidade de consultor, ajudou a formalizar candidaturas de municípios como Esposende, Gondomar ou Santa Maria da Feira a este programa comunitário.

“O primeiro grande ponto do programa é criar um projecto cultural que chegue às populações mais susceptíveis de fortes desigualdades sociais – e que agora se agravaram com a pandemia”, diz ainda o programador, realçando que a importância do Cultura para Todos ver-se-á aumentada numa altura em que a pandemia vai certamente “deixar feridas mais abertas” precisamente nessas populações mais desfavorecidas, porque também mais afastadas dos principais centros urbanos do país.

“Ou queremos trabalhar para a coesão do país, ou não queremos; não podemos ter uma narrativa e depois estarmos, tipo catavento, a virar para todos os lados”, alerta Hugo Cruz.

A importância, junto das populações locais, deste programa comunitário foi também defendida, ainda antes do anúncio da linha de 30 milhões de euros de apoio por António Costa, pela vereadora da Cultura da Câmara Municipal do Cartaxo, Elvira Tristão, que, num artigo de opinião no jornal Mais Ribatejo, lembrava que “mais do que nunca, o programa Cultura para Todos pode fazer das fraquezas forças”. “Ainda que seja necessário reajustar o programa a novos timings e a medidas preventivas redobradas, esta pode – e deve ser – uma oportunidade de apoiar os territórios, os mais vulneráveis, os profissionais da área cultural e a capacidade de todos nós, enquanto colectivo, de pensarmos na cultura enquanto oportunidade de compreensão das nossas circunstâncias e de capacitação para nos fortalecermos enquanto comunidade e território”, escreveu a autarca eleita pelo PS.

Sugerir correcção