Costa e Marcelo afastam geolocalização obrigatória de infectados

Medida será inconstitucional, tal como o é o uso de metadados no combate ao terrorismo, a não ser que seja voluntária. Presidente e primeiro-ministro alinhados na necessidade de começar a abrir economia gradualmente e com restrições sectoriais ou regionais.

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Presidente e primeiro-ministro lembram exemplo dos metadados LUSA/MANUEL DE ALMEIDA

Localizar doentes de covid-19 por telemóvel como medida de rastreio obrigatória, tal como tem sido feito em países como a China, Singapura ou a Coreia do Sul, pode ser muito eficaz, mas será inconstitucional em Portugal. A ideia foi deixada no final da reunião técnica entre especialistas e políticos no Infarmed esta quarta-feira pelo primeiro-ministro e Presidente da República, que lembraram como o Tribunal Constitucional já por duas vezes “chumbou” a utilização dos metadados de telecomunicações pelas secretas para prevenir actos de terrorismo.

De acordo com relatos feitos ao PÚBLICO, a questão foi levantada na plateia e do lado dos epidemiologistas sublinhou-se que, para haver levantamento de restrições sem correr o risco de uma segunda vaga de infecção, terá de haver monitorização apertada e sistemas de vigilância que permitam perceber as cadeias de transmissão que possam ocorrer – ou seja, ao saber-se que alguém está infectado, perceber onde e com quem esteve, tal como se fez nas primeiras duas semanas de epidemia em Portugal com base em inquéritos aos infectados, e que permitia fazer claramente o mapa da cadeia de infecção – e que deixou de ser possível quando esta passou ao patamar de comunitária.

Os especialistas consideraram que georreferenciação de infectados como tem sido feita noutros países é eficaz, mas nas intervenções finais António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa afastaram o cenário. Costa deixou claro que tinha muitas dúvidas sobre a constitucionalidade do “contact tracing”, na expressão inglesa, considerando que a medida não passaria no Tribunal Constitucional (TC). E o Presidente da República concordou, mas considerando que qualquer medida deste tipo teria de ter um parecer prévio do TC e da provedora de Justiça e que teria sempre de ser pensada de forma a garantir a privacidade dos cidadãos.

Em causa estariam outras formas de utilização de dados das operadoras de telecomunicações que, de forma anónima e agregada, permitem perceber o comportamento das populações de determinada região. Numa das anteriores reuniões do Infarmed foi revelado um estudo feito com dados agregados que revelou que, no primeiro fim-de-semana do estado de emergência em Portugal, houve uma intensa movimentação de pessoas que estiveram pessoalmente com outras por mais de 15 minutos (verificada a proximidade dos respectivos telemóveis).

“A georreferenciação não é um papão. Até chegar à intromissão na privacidade há uma larga margem de utilização desses dados que é muito útil, quando feita numa base autónoma”, afirmou um dos presentes na reunião do Infarmed.

Os avisos dos partidos

Mas não foi assim que o deputado único da Iniciativa Liberal, assim como outros dois dirigentes políticos ouvidos pelo PÚBLICO entenderam as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa como admitindo um novo estado de emergência para permitir a georreferenciação obrigatória de infectados.

“Assusta-nos o senhor Presidente da República já nos estar a avisar que um próximo estado de emergência poderá ter de ser mantido para permitir determinado tipo de sistemas de rastreio e vigilância”, disse João Cotrim Figueiredo aos jornalistas, recusando a ideia de “trocar liberdades individuais por sistemas de vigilância para os quais há alternativas que não ferem a privacidade e a liberdade das pessoas”.

O deputado único do Chega também falou nessa possibilidade, considerando que “o uso de tecnologia pode ser especialmente importante” para combater a propagação da pandemia, mas recomendando que a provedora de Justiça “entre no debate”. E Francisco Rodrigues dos Santos, líder do CDS-PP, defendeu o “desenvolvimento de aplicações digitais” para rastrear infectados, desde que “garantindo a privacidade”.

À esquerda, tanto o PCP como o BE revelaram preocupações com a garantia dos direitos fundamentais, mas sem se referirem à georreferenciação de doentes. “Rejeitamos qualquer medida de controlo que ponha em causa os direitos fundamentais dos portugueses”, afirmou o dirigente comunista Jorge Pires. E Catarina Martins, líder do BE, defendeu que “o país tem de estar preparado para aliviar as medidas e deixar de ter estado de emergência e saber viver com outras medidas enquanto for necessário por razões de saúde pública, mas sem suspensão dos direitos constitucionais”.

Aprender a conviver com o vírus

Na quarta sessão técnica com especialistas e políticos no Infarmed, o debate foi, finalmente, sobre as formas possíveis de começar a levantar algumas restrições e a abrir a economia sem que isso represente uma segunda vaga de covid-19, como aconteceu noutros países. Especialistas falaram, por exemplo, do caso de Singapura e da Coreia do Sul, onde tal já se verificou, e foram unânimes na indicação de que o levantamento de restrições representará sempre uma subida dos números. Mas também os políticos são unânimes quanto à necessidade de se começar a retomar a actividade económica, ainda que de forma gradual.

“Se Abril correr bem, permitirá olhar para Maio como um mês diferente, já de transição progressiva, olhando para os vários sectores áreas e realidades que são diferentes entre si”, disse o Presidente da República à saída. Ou, por outras palavras, “os portugueses vão começar a habituar-se à ideia de conviver com o vírus”, numa “retoma progressiva da vida social e económica” que continuará a ser, no entanto, “incompatível com fenómenos de massas”, sublinhou.

Em sintonia, o primeiro-ministro acrescentou que o momento em que se pode começar essa transição será aquele em que se considerar que o aumento inevitável do risco de contaminação será “gerível e controlável”. Esse momento, afirmou, será indicado pelos especialistas tendo em conta o RO, ou seja, a taxa de contaminação por pessoa infectada – que neste momento já estará abaixo de 1, como é desejável, mas ainda insuficiente.

 “Temos de conseguir conduzir esta pandemia àquele nível em que consigamos conviver socialmente com o coronavírus de uma forma aceitável, em que sabemos que o risco de contágio existe, mas é possível controlar esse risco de contágio e as suas consequências”, disse António Costa aos jornalistas.

Todos os partidos foram (quase) unânimes na necessidade de começar a haver um levantamento da quarentena “o mais depressa possível mas sem dar um passo em falso” em relação ao aumento exponencial da infecção, como pediu Baptista Leite, deputado do PSD. Quase, porque Cotrim Figueiredo acabou por atacar esse mesmo “unanimismo artificial” que, na sua opinião, apenas é “um favor que estão a fazer à pandemia”. O deputado da Iniciativa Liberal não tem confiança nos dados revelados, critica a ausência de um plano de testes e de outro para fazer a vigilância e rastreio dos infectados – mas sem telemóveis.

A sessão técnica do Infarmed decorreu na véspera da segunda renovação do estado de emergência, que deverá ser decretada pelo Presidente e aprovada o Parlamento. A próxima reunião com especialistas já está marcada para dia 28, dias antes do fim deste período de excepção, que todos esperam que seja o último – mas ninguém o garante.

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