“Quem és tu, Jan Thiel?” O mistério dos artistas sem rosto no Spotify

Artistas desconhecidos preenchem parte das mais populares listas de reprodução do Spotify. Serão armas de uma guerra entre a plataforma e as grandes editoras?

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Reuters/CHRISTIAN HARTMANN

No início de Março, a cantora e instrumentista norte-americana Zola Jesus abriu o Spotify e clicou numa das inúmeras e populares listas de música que a plataforma online de streaming oferece, desde hip-hop a pop-rock, passando por sequências escolhidas para servirem de banda sonora a uma sessão de estudo ou a uma sesta no sofá. Na lista escolhida, Zola reparou numa faixa que tinha sido reproduzida mais de 1,5 milhões de vezes desde o lançamento do respectivo álbum, a 31 de Janeiro de 2020. 

Não era um número impossível. Blinding Lights, por exemplo, um single do músico canadiano The Weeknd lançado há poucas semanas, soma mais de 500 milhões de reproduções no Spotify, liderando o top mundial da plataforma. 

O que era estranho neste caso era tratar-se de uma música de um autor absolutamente desconhecido: Jan Thiel. O suposto artista não tem qualquer pegada digital: não existe nas redes sociais, nem há qualquer artigo de imprensa sobre si. Tem somente um álbum, disponível apenas no Spotify —​ um EP de três faixas chamado Suda, o tal lançado a 31 de Janeiro. Ali, tem apenas 142 seguidores. E, no entanto, há registo de cerca de milhão e meio de pessoas que escutam as suas músicas mensalmente, e as suas três faixas foram reproduzidas mais de cinco milhões de vezes.

Uma “epidemia” sueca

“QUEM ÉS TU, JAN THIEL?”, perguntou Zola Jesus na rede social Twitter. A resposta é “ninguém”. Jan Thiel é tão real como Leslie Miles, Sigimund ou Piano Pianissimo, nomes de artistas fictícios que preenchem parte das listas de reprodução do Spotify, sobretudo as de música ambiente, e que somam centenas de milhões de reproduções.

A pergunta de Zola Jesus ressuscitou uma controvérsia recorrente dos últimos três anos. Em 2017, o site Music Business Worldwide, que acompanha a indústria discográfica, acusou o próprio Spotify de preencher deliberadamente as suas listas de reprodução com artistas inexistentes, propondo a teoria de que este seria um mecanismo para pagar menos aos artistas verdadeiros da plataforma, uma vez que estes são pagos em função da sua percentagem do total de músicas escutadas no serviço de streaming. O site identificou ainda a produtora por detrás de dezenas de nomes fictícios, a sueca Epidemic Sound, especulando sobre a existência de um acordo entre as duas entidades. Na altura, o Spotify negou a existência de qualquer esquema. No entanto, o fenómeno mantém-se até hoje: há dezenas de artistas no Spotify que não têm qualquer existência fora da plataforma e que continuam a encontrar lugares de destaque nas listas de reprodução.

Mais do que manter-se, intensificou-se. Em 2019, a revista Rolling Stone apontou o dedo à Sony Music, o segundo maior gigante discográfico do mundo. Esta é acusada de tentar alargar a sua percentagem de faixas tocadas no Spotify através de artistas como Sleepy John. Este nome sem rosto, representado pela Sony, assina álbuns com dezenas de faixas cada, de curtíssima duração, com sons de tempestades, do mar ou de bebés, e que aparecem proeminentemente em listas de reprodução criadas na plataforma pela Filtr, uma empresa pertencente à Sony Music (que recusou comentar o artigo da revista). Uma espécie de “se não podes vencê-los, junta-te a eles”, a tocar num smartphone ou num computador perto de si.

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