Um “gesto simbólico de coesão”: Prémio Turner entregue aos quatro finalistas a pedido dos próprios

É uma decisão inédita em tempos de divisão. Lawrence Abu Hamdan, Helen Cammock, Tai Shani e Oscar Murillo são os primeiros artistas a receber colectivamente o importante prémio britânico.

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LUSA/VICKIE FLORES

É um ano de excepção no Prémio Turner, uma das mais importantes distinções de artes plásticas em todo o mundo. Ao invés de um vencedor, há quatro – os finalistas pediram para não concorrer entre si mas sim ser distinguidos por igual. “As políticas com que lidamos diferem muito e para nós seria problemático se fossemos postos uns contra os outros, implicando isso que um era mais importante, significativo ou mais merecedor de atenção do que os outros”, disseram os quatro artistas britânicos. O júri concordou, de forma unânime, ajudando assim a fixar 2019 como um ano especialmente político do galardão, premiando obras sobre feminismo, direitos humanos ou a globalização e um “gesto simbólico de coesão”.

E os vencedores são, então, Lawrence Abu Hamdan, Helen Cammock, Tai Shani e Oscar Murillo, que pela sua tomada de posição criaram uma situação de surpresa na ausência de surpresa – os seus nomes, como finalistas, eram já conhecidos desde Maio, mas é a primeira vez em 35 anos de Prémio Turner que este é entregue ex-aequo e sobretudo assim atribuído a pedido dos laureados. Os finalistas conheceram-se por causa da nomeação para o prémio, e decidiram a sua posição através de discussões via WhatsApp e Google Docs, detalha o diário norte-americano The New York Times.

“Nesta altura de crise política no Reino Unido e em muitas partes do mundo, quando há já tanto que divide ou isola as pessoas e as comunidades, sentimo-nos muito motivados a usar a ocasião do prémio para fazer um statement colectivo em nome da comunalidade, multiplicidade e solidariedade – na arte tal como na sociedade”, dizem os quatro artistas no comunicado que entregaram ao júri.

Este, presidido por Alex Farquharson, director da Tate Britain, e composto por Alessio Antoniolli, director da rede de apoio a jovens artistas Gasworks & Triangle, Elvira Dyangani Ose, directora da galeria The Showroom, Victoria Pomery, directora da Turner Contemporary, e o jornalista Charlie Porter, acatou com agrado o pedido dos finalistas. O público da sessão de anúncio do prémio, em Margate (sede da Turner Contemporary), saudou a decisão com uma ovação em pé, descreve o The New York Times.

“É uma honra para nós apoiar esta afirmação arrojada de solidariedade e colaboração nestes tempos divididos”, escreve o júri no seu próprio comunicado, citado pela BBC. “O seu acto simbólico reflecte a poética política e social que admiramos e valorizamos no seu trabalho.”

As obras premiadas debruçam-se sobre diferentes temas e comunicam em plataformas e formatos distintos. Lawrence Abu Hamdan trabalhou o som da prisão síria de Saydnaya a partir de uma colaboração com a Amnistia Internacional e o projecto Forensic Architecture. Helen Cammock foi premiada pelo seu filme sobre o papel esquecido das mulheres nas lutas pelos direitos civis e em particular nos Troubles irlandeses (o nome que simboliza os 39 anos de guerra na Irlanda do Norte). Oscar Murillo criou uma série de figuras humanas que representam trabalhadores que podiam estar a ver uma belíssima vista do mar através de uma janela – mas esta está coberta por um pano negro. Na instalação feminista de Tai Shani, por seu turno, vive-se numa cidade construída por mulheres, um mundo pós-patriarcal num tempo de narrativas pós-apocalípticas.

O prémio quádruplo é provavelmente irrepetível, diz Alex Farquharson no diário britânico The Guardian. “Não penso que tenhamos tido uma shortlist em que o trabalho dos quatro artistas tivesse um formato participativo e em que todos abordavam preocupações políticas profundas e prementes, vindo tudo isto na altura em que vem.”

Os artistas manifestaram-se ainda na altura da subida ao palco para agradecer o Turner, com Cammock a ler um comunicado conjunto em que voltaram a frisar como a essência dos seus trabalhos e posturas não se coaduna com a natureza competitiva de um prémio. “Numa era marcada pela ascensão da direita e pela renovação do fascismo, numa era de ambiente hostil dos Conservadores que nos tornou a cada um de nós e a muitos dos nossos amigos e famílias, paradoxalmente, cada vez menos bem-vindos no Reino Unido.”

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Tai Shani mostra um colar que pede a saída dos Tories do poder, na cerimónia de entrega do Turner VICKIE FLORES/EPA

Criado em 1984 e no valor de cerca de 47 mil euros, o Turner é atribuído anualmente a um artista britânico com menos de 50 anos e que tenha tido a melhor exposição do último ano. Baptizado em honra do pintor romântico britânico Joseph William Turner (1775-1851), já foi entregue a Damien Hirst, Steve McQueen, Tracey Emin ou Elizabeth Price, ajudando a consolidar carreiras e criando um acontecimento em torno da sua exposição. O valor pecuniário vai ser dividido entre os quatro artistas.

O Turner colectivo é entregue num ano em que outros prémios foram também entregues em múltiplos: em Outubro, Margaret Atwood e Bernardine Evaristo receberam ambas o prémio literário Booker e no mesmo mês foram entregues dois Nobel da Literatura, relativos a 2018 e 2019, a Peter Handke e Olga Tokarczuk.

“Talvez os prémios anuais como o Turner ou o Booker, que também não teve um único vencedor este ano, estejam a chegar à sua data de validade: um anacronismo de uma era binária passada de vencedores e derrotados”, escreveu o editor de Artes da BBC Will Gompertz. “Subverter o jogo é algo que é suposto que os artistas façam”, sublinha o crítico de arte do Guardian Adrian Searle, recordando que Helen Marten também dividiu o seu Turner com os finalistas de 2016 (mas é formalmente a vencedora) e que Theaster Gates fez o mesmo com o dinheiro do prémio Arts Mundi em 2015. “Esta tomada de posição de solidariedade e comunalidade dos artistas finalistas é o princípio, e não o fim, da discussão sobre o prémio deste ano.”

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