Na Irlanda do Norte a História ainda pode ser uma ameaça à paz

Projecto que visava recolher as memórias dos envolvidos nos Troubles não sobreviveu à detenção de Gerry Adams.

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Pichagem num bairro católico de Belfast que chama “bufos” aos responsáveis pela recolha histórica Paul Hackett/Reuters

Dezasseis anos depois dos acordos de Sexta-feira Santa, a Irlanda do Norte é ainda um terreno de conflitos por resolver – um dos maiores é aquele que opõe os que exigem justiça para os seus mortos aos que insistem que reabrir velhas feridas apenas serve para ameaçar a paz conquistada. A detenção de Gerry Adams, líder do Sinn Féin e um dos artífices da paz, por suspeita de envolvimento num sequestro e homicídio ocorrido há 32 anos, voltou a provar o potencial desestabilizador deste passado mal resolvido, que um controverso projecto de recolha histórica veio acirrar.

Adams foi libertado no último domingo, após quatro dias de interrogatórios, e cabe ao Ministério Público decidir se existem provas para o acusar pelo “desaparecimento” de Jean McConville – uma viúva de 37 anos que foi arrastada para fora de casa por um comando do IRA (Exército Republicano Irlandês), sob o olhar aterrorizado dos seus dez filhos, interrogada, executada a tiro e enterrada em segredo por suspeita de ser informadora da polícia.

Mas aqueles quatro dias desenterraram ameaças antigas: o Sinn Féin, principal partido republicano que partilha com os unionistas o poder na Irlanda do Norte, denunciou motivações políticas ocultas, admitindo deixar de apoiar a polícia da região (um dos principais pilares dos acordos de 1998) se o caso não fosse “resolvido de maneira satisfatória”; o primeiro-ministro unionista, Peter Robinson, admitiu depois que esteve a um passo de exigir a saída do Sinn Féin do governo se os republicanos não recuassem na ameaça, o que teria levado ao colapso das instituições autónomas.

Antes e depois de ser detido, Adams negou qualquer ligação à morte de McConville, um dos crimes arquivados mais célebres dos Troubles (eufemismo pelo qual ficaram conhecidos os 39 anos de guerra) e apontou baterias àquela que é a principal peça da acusação – um conjunto de entrevistas a antigos membros do IRA, gravadas em segredo e fechadas num cofre do Boston College, universidade americana com ligações históricas à Irlanda.

O Belfast Project, como se tornou conhecido, nasceu de uma ideia de Paul Bew, um dos mais reputados historiadores da Irlanda do Norte, quando em 2000 esteve como convidado no Boston College, onde existe uma das maiores colecções de História e literatura irlandesa, mas à qual faltava um registo do recente conflito. “Bew sentia que seria necessária uma comissão de verdade e reconciliação ao estilo sul-africano para cimentar o processo de paz, mas sabia que seriam necessários vários anos até que a situação política fosse estável” e era necessário assegurar que a memória dos protagonistas não desaparecia com a sua morte, escreveu o jornal The Telegraph.

Bew sugeriu que o projecto fosse liderado por Ed Moloney, um jornalista que passou décadas a cobrir o conflito. E este, convicto de que só alguém que conhecia por dentro o IRA poderia convencer os paramilitares a quebrar o silêncio, escolheu para a tarefa Anthony McIntryre, um antigo militante do IRA que se doutorou em História após sair da prisão, recorda uma investigação da revista universitária americana The Chronicle.

"Um crime punível com a morte"

Entre 2001 e 2006, McIntryre gravou centenas de horas de entrevistas com 26 antigos membros do IRA, na mesma altura um outro investigador recolheu os testemunhos de 20 ex-paramilitares unionistas. Tudo no mais absoluto sigilo – apenas duas pessoas do Boston College estavam a par do projecto e todas as gravações foram feitas em segredo. Aos entrevistados, era garantido que as suas palavras ficariam seladas até à sua morte.

A confidencialidade, explicou mais tarde Moloney, era essencial: “É um crime punível com a morte se algum antigo ou actual membro revelar detalhes sobre os assuntos do IRA a estranhos”. Após cada encontro, McIntryre transcrevia as entrevistas e enviava-as, por email email encriptado para Moloney, que residia nos EUA e se encarregava de guardá-las na biblioteca do Boston College.

Mas o segredo durou menos do que esperava. Em 2010, Moloney publicou o best-seller Voices from the Grave, uma espécie de testamento póstumo de Brendan Hughes, comandante da brigada de Belfast e líder dos presos do IRA durante a greve de fome de 1980, que morrera dois anos antes. E o que Hughes tinha para contar não poderia ser mais incómodo para o líder do Sinn Féin, de quem se tornara muito crítico. Assegurava que Adams foi comandante do IRA (algo que este sempre negou) e que foi dele a ideia de criar um grupo especial para identificar e matar supostos informadores da polícia, enterrando-os em locais secretos.

Jean McConville, uma protestante viúva de um católico, foi incluída nesta lista em 1972. “Um único homem deu a ordem para que ela fosse executada e esse homem era o líder do Sinn Féin”, afirmou Hughes. Quebrando o sigilo que prometera a McIntryre, Dolours Price, uma das mais célebres operacionais do IRA, confirmou a acusação, dizendo que foi Adams quem lhe deu a ordem para que conduzisse o carro em que McConville foi levada.

O líder do Sinn Féin repudiou as acusações, que disse não passarem de tentativas de boicote de quem nunca se conformou com a paz, mas o livro e as declarações de Price foram suficientes para pôr a polícia da Irlanda do Norte no encalço do Belfast Project. Ao abrigo de um tratado de cooperação com os Estados Unidos, exigiu acesso às gravações e, em Maio de 2013, a justiça americana ordenou ao Boston College que entregasse 11 excertos com informações sobre morte de McConville.

A bomba que se preparava explodiu a 30 de Abril, quando a polícia deteve Adams. Mas se a sua libertação evitou a crise que se chegou a desenhar, o caso ditou a morte prematura do Belfast Project. O Boston College dissociou-se do projecto, apontando falhas graves de supervisão, e prometeu devolver as gravações aos entrevistados. McIntryre, a viver na República da Irlanda, disse que a sua família voltou a ser ameaçada de morte, e Moloney foi acusado de ter minado uma ideia com mérito ao precipitar a publicação do livro quando a maioria dos visados ainda estão vivos, tanto mais que os acordos de paz não incluíram uma amnistia formal para crimes não julgados.

“As gravações ficaram conhecidas pelas piores razões. São vistas demasiado como uma matéria de actualidade e muito pouco como História”, disse o historiador irlandês Diarmaid Ferriter, lembrando que o espólio reunido na década de 1950 pelo governo de Dublin com os testemunhos dos implicados na guerra pela independência só foi aberto em 2003. "A verdade aqui não serve para reconciliar, serve para espicaçar os inimigos”, lamentou-se McIntryre ao The Cronicle.

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