E o Diabo aqui tão perto

Poderá o Chega, daqui a oito anos, como afirmou o seu líder, ser o maior partido de Portugal? Convém não desdenhar do que aparenta ser, para muito, apenas fanfarronice.

Terá sido um golpe de estado? O poder caiu na rua? A julgar pela intempérie que se abateu sobre a classe política, jornalística e mediática, qualquer observador recém-chegado a Portugal interrogar-se-ia sobre a calamidade. Mas não. O curto-circuito e a destemperança teve origem na escolha eleitoral de cerca de sessenta mil portugueses num partido antissistema, populista de direita, que passou a ter assento parlamentar pela primeira vez desde 1974.

Nas redes sociais, no meio da berraria, conseguia-se a custo entender as palavras “fascismo” e “nunca mais”, assim como pedidos exaltados e emotivos para boicotes e censuras. Na comunicação social dita “séria” qualquer pessoa à procura de uma analise “séria” para essa novidade histórica ficou certamente frustrada. O partido foi chamado de “lixo”, o seu líder de “idiota, sem uma ideia na cabeça”, um “discurso que repete o que as pessoas dizem nas tascas e nos transportes públicos” (o autor desta frase nem reparou na ironia), e finalmente de uma coisa “abjecta” e “repugnante”. Já os políticos, esses na sua imensa maioria, reagiram como os donos de uma coutada, exibindo toda uma atitude de regalia e de desdém pelo intruso. E no primeiro debate com o líder do partido-intruso os olhos reviraram-se, ouviram-se suspiros e irritadas manifestações de enfado. E todos, todos eles, guerreiros da Internet, comentadores e políticos portaram-se como crianças mimadas e amuadas a quem roubaram o “sossego” democrático.

Se os “guardiões do sistema”, de qualquer proveniência, acham que a hostilidade e a violência verbal são a melhor defesa para o partido insurgente estão redondamente enganados. Esse foi um dos erros cometidos, já há muitos anos atrás, noutros sistemas partidários da Europa Ocidental. Essa atitude tem um efeito: eleva a aura desse partido como a única oposição ao sistema (e por isso tão vilipendiada) e reforça a sua mensagem de que o partido é realmente a única voz dissonante. E confirma não apenas aos votantes do Chega, mas sobretudo a uma parte do eleitorado que se abstém por não se identificar com os políticos atuais (e esse eleitorado é que é potencialmente a bomba-relógio), que a classe política “do costume” vê a democracia como um feudo apenas acessível aos mesmos de sempre.

Acabou-se o “sossego” democrático? Mas qual tem sido o preço a pagar por esse “sossego”? A inexistência de debate sobre temas potencialmente fraturantes como os relacionados com as tensões – sociais, culturais ou de segurança típicas de sociedades cada vez mais multiculturais e multiétnicas? Ou sobre politicas de imigração? Estes são temas incómodos, desconfortáveis muitas vezes, mas é a democracia que perde quando são ignorados pelos partidos políticos. Até porque quanto mais os partidos tradicionais não darem prioridade à sua discussão, mais o partido antisistemico se apodera delas, tornando-as suas (e com isso aumentam a sua base de apoio). Também este padrão aconteceu um pouco por toda a Europa Ocidental nos últimos 20/30 anos.

E o que poderá acontecer no futuro? Poderá o Chega, daqui a oito anos, como afirmou o seu líder, ser o maior partido de Portugal? Convém não desdenhar do que aparenta ser, para muito, apenas fanfarronice. O partido tem, claramente, problemas para resolver internamente e, caso não o faca, a sua progressão estagna. Por exemplo, tem uma excessiva personalização e precisa de quadros dirigentes capazes de complementar a liderança, não tem implantação a nível local, tem um carácter muito sulista, e poderá ter que recalibrar o seu discurso económico demasiado liberal na direção de um maior protecionismo, para assim captar as classes trabalhadores, precárias e que sofrem com as consequências da globalização. Mas o Chega pode – e aqui também refletindo um pouco o que se passa noutros países da Europa Ocidental – transformar-se no partido do Portugal periférico. Ou seja, pode ser o contraponto ao “Portugal de cima” (urbano, cosmopolita, com bons índices de vida) e tornar-se o representante do “Portugal de baixo” (que anseia por mais proteção económica e cultural, suburbano, mas também das pequenas cidades e vilas, e do mundo rural). Interclassista e transversal a boa parte da sociedade portuguesa. E, se isso acontecesse (e depende de muitos factores, entre os quais a capacidade e competência do partido, assim como dos “passos errados” dos outros partidos), seria o equivalente a uma revolução no sistema partidário saído de Abril.

Mas seja como for, este é seguramente um teste à democracia portuguesa. Não, como se diz por ai, à sua sobrevivência. Mas à sua maturidade. E à capacidade do sistema político se abrir ao debate de temas negligenciados e de mostrar aos segmentos da população desencantados e defraudados (os do Chega e os milhões de abstencionistas) que também eles estão representados na democracia portuguesa do século XXI.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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