Mais de 60 mil crianças em perigo em 2018. Negligência continua a ser a principal razão

Comissões de protecção acompanharam mais de três em cada 100 crianças no país, de acordo com o relatório anual de 2018. Apenas nove foram colocadas em famílias de acolhimento.

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Adriano Miranda

Menos processos instaurados em 2018 ou reabertos, menos medidas aplicadas e menos crianças acompanhadas pelas comissões de protecção de crianças e jovens (CPCJ). No entanto, o universo de crianças em perigo continua a ser de dezenas de milhares. No ano passado, 60.493 crianças foram acompanhadas pelas 309 CPCJ no país. Deste número, mais de metade (31.186) corresponde a processos novos, instaurados em 2018. Só nesse ano, 819 crianças foram institucionalizadas depois de retiradas à família.

No total, houve 3,2 crianças em cada 100 a serem acompanhadas por uma CPCJ, de acordo com o relatório anual da Avaliação Anual das CPCJ de 2018, para cada distrito, e com base nos Censos de 2011 e nos processos de crianças acompanhadas em 2018.

Foram menos do que em 2017, quando 3,7 em cada 100 estiveram nesta situação. O relatório anual, a que o PÚBLICO teve acesso, é apresentado esta quarta-feira em Tavira no encontro das CPCJ na presença do ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, José António Vieira da Silva, da procuradora-geral da República, Lucília Gago, e da presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), Rosário Farmhouse.

De acordo com o documento de mais de 150 páginas, foram aplicadas 14.007 medidas para proteger as crianças. Dessas, 11.687 foram desenvolvidas através de apoio junto dos pais. As crianças com medidas de acolhimento residencial (aplicadas só em 2018) foram 819 – abaixo das 1120 de 2017. Apenas nove crianças foram colocadas numa família de acolhimento, um número que tem vindo a baixar nos últimos anos: em 2014, foram 28 crianças, em 2017 houve 22.

“Em Portugal, conseguimos resolver a grande maioria das situações em sede de acolhimento em meio natural de vida – o que evita que a criança tenha que ser encaminhada para uma situação mais extrema” que obrigaria a uma medida de colocação, em residência ou em família de acolhimento, defende a secretária de Estado da Inclusão para as Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, num encontro prévio com jornalistas. 

Questionada sobre se a redução no número de crianças institucionalizadas de 1120 em 2017 para 819 em 2018, esteve relacionada com “orientações da tutela” perante as críticas que apontam os elevados números de institucionalizações em Portugal, Ana Sofia Antunes é peremptória: “Não existem orientações da tutela quanto à actividade das CPCJ. Aquilo que a CPCJ, na sua modalidade restrita, decide aplicar, não pode ser objecto de qualquer orientação da tutela, porque a questão da isenção e da independência da CPCJ é o corolário fundamental deste sistema. Se não fosse assim, não tínhamos CPCJ com representantes das forças locais.”

Ao longo do ano, houve 13.905 novas situações de perigo – repartidas por 5999 situações de negligência (ou seja 43% das novas situações). 

Já no ano passado, a negligência representou 40% das novas situações de perigo diagnosticadas em 2017, quando em 2016 não tinha passado dos 29%. Esse aumento teve a ver com o facto de em 2017 a negligência, enquanto situação de perigo, ter passado a incluir a chamada exposição a comportamentos que comprometem o bem-estar e desenvolvimento da criança. Esta situação abrange, entre outras, a negligência afectiva, educativa ou relativa à saúde da criança, mas também por exposição a comportamentos susceptíveis de lesar os filhos, como a exposição ao consumo de estupefacientes ou de álcool, prostituição e outros. 

A exposição de uma criança a violência doméstica passou a ser uma categoria autónoma no relatório de actividades, refere a presidente da CNPDPCJ. Em 2018, houve 1661 casos diagnosticados de crianças expostas à violência doméstica, das quais 12 também foram agredidas fisicamente nesse contexto, o que a coloca em quarto lugar das situações de perigo.

Antes disso, em segundo lugar de importância, surgem 2606 casos de crianças que assumem comportamentos de risco (que podem ser consumo de estupefacientes ou de bebidas alcoólicas, comportamentos anti-sociais graves, ou de indisciplina, bullying e outros). E em terceiro lugar de importância, aparecem as situações de perigo de crianças que não vêem respeitado o seu direito à educação: são 2422 casos.

Absentismo e abandono escolar

Estes são sobretudo explicados pelo absentismo (em 74% das situações) e pelo abandono escolar (13%). Surgem depois o mau trato físico (384 casos) ou psicológico (239 casos), o abuso sexual (138 casos) ou a exploração infantil reportada em nove situações. Há ainda 193 casos na categoria de “outras situações” não definidas especificamente.

Para Rosário Farmhouse, presidente da CNPDPCJ, “estes números retratam dois desafios dos tempos actuais” relacionados com várias circunstâncias como o facto de haver “famílias mais isoladas, mais pequenas ou mais ocupadas, ou que eventualmente não estão tão atentas”. E acrescenta: “Os comportamentos de perigo na infância e na juventude têm vindo a aumentar e nestes comportamentos também temos estes dos tempos novos modernos, dos jogos, todas estas adições ao mundo virtual que são mais recentes, os comportamentos auto-lesivos ou de consumos. Nesses, tem havido algum aumento. Em traços gerais, este relatório reflecte a realidade portuguesa mas também a de outros países.”

O volume global dos processos foi de 61.291, contando os processos instaurados em 2018, transitados de anos anteriores ou reabertos. A este número, se se acrescentar o de processos arquivados liminarmente (sem abertura de processo) ou de processos que foram transferidos para outra CPCJ, o volume global foi de 70.151, o que corresponde a uma redução de 870 processos em 2017, quando o total chegou aos 71.021.

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