Os pontos quentes do relatório que irritou a EDP

O relatório preliminar produzido pelo deputado do Bloco de Esquerda Jorge Costa começa a ser discutido esta quarta-feira, ao fim da tarde.

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Rui Gaudencio

O relatório preliminar da comissão parlamentar de inquérito ao pagamento de rendas excessivas aos produtores de electricidade (CPIPREPE), que vai ser apresentado e discutido esta tarde na comissão parlamentar, já provocou uma reacção forte da sua principal visada, a EDP.

Numa declaração divulgada ontem ao final do dia, a eléctrica considerou que o texto produzido pelo deputado do Bloco de Esquerda, Jorge Costa, padece de “incorrecções e vícios” e de “juízos meramente opinativos” e “demagógicos”. A empresa “repudia as várias recomendações e conclusões” que o relatório preliminar apresenta e diz mesmo que as conclusões do trabalho “poderiam ter sido produzidas” antes das audições se terem iniciado.

A eléctrica presidida por António Mexia não é, contudo, o único alvo do relatório preliminar. O texto de Jorge Costa dispara em várias direcções e propõe, por um lado, obrigar a EDP a devoluções milionárias no âmbito dos famosos contratos CMEC (custos para a manutenção do equilíbrio contratual), incluindo a repartição com os consumidores de ganhos de 198 milhões de euros obtidos com operação de venda de dívida tarifária e novos cortes aos ganhos que a EDP terá com os CMEC até ao final deste mecanismo (em 2027).

Por outro lado, propõe eliminar uma série de encargos que os consumidores suportam nas facturas eléctricas. E aqui cabem, por exemplo, a remuneração dos terrenos da REN, o fim das tarifas garantidas dos produtores de renováveis ou os subsídios pagos à indústria pela possibilidade de desligarem os seus consumos eléctricos em caso de necessidade do sistema eléctrico. O relatório reparte por vários capítulos os “temas quentes” que foram discutidos em meia centena de audições, que decorreram entre o final de Junho e o mês de Março.

Vantagens à EDP na passagem dos CAE para os CMEC

O objectivo de neutralidade financeira não foi observado na passagem dos anteriores contratos de aquisição de energia (CAE) para os custos para a manutenção do equilíbrio contratual (CMEC). O relatório conclui que “a manutenção do equilíbrio contratual dos CAE (concedidos à empresa na década de 90 para a valorizar para a privatização) não foi respeitada em diversos pontos da nova legislação, tal como a ERSE indicou no seu parecer prévio ao Decreto-Lei 240/2004, que define as condições da cessação dos CAE e a criação de medidas compensatórias” e que foram concedidas vantagens à EDP.

O documento assinado por Jorge Costa recorda que, no âmbito do cálculo do acerto final dos CMEC, “a ERSE contabilizou alguns desses elementos de vantagem, perfazendo um valor de 510 milhões de euros de rendas excessivas a corrigir”. Diz ainda que “os elementos que pervertem o objectivo legal da manutenção do equilíbrio contratual devem continuar a ser corrigidos” e que, nessa ordem, “a sobre-remuneração constituída na atribuição dos CAE à EDP e mantida pelos CMEC deve ser revista para o período remanescente deste regime”, que vai até 2027. A EDP já está a contestar em tribunal o valor que deverá receber até lá: 154 milhões de euros. A empresa reclama ter direito a mais 100 milhões de euros.

Extensão do prazo de exploração das barragens

A avaliação do valor económico a receber pelo Estado como contrapartida pelo alargamento do prazo de exploração das barragens da EDP “não obedeceu ao princípio do investidor privado numa economia de mercado ou num concurso público, o que levaria à utilização de uma única taxa de desconto para todo o investimento”. Assim, “a utilização de taxas diferenciadas, criticada pela ERSE em 2004 e em 2017, resultou numa perda pelo Estado de uma receita de 581 milhões de euros, comunicada à Comissão Europeia pelo secretário de Estado Artur Trindade em 2012”. O relatório recomenda que se crie “um mecanismo de revisibilidade anual da compensação paga ao Estado pela EDP pela subconcessão do domínio público hídrico” que deverá “corrigir o efeito da subcompensação recebida da EDP em 2007” e incluir outros acertos relativos a ganhos de exploração que os estudos de 2007 não contabilizaram. A EDP pagou cerca de 700 milhões de euros pelo prolongamento das concessões.

O relatório refere ainda que, além de Ricardo Ferreira, o actual director de regulação da EDP, que assessorou os ministros Carlos Tavares e Álvaro Barreto, e João Conceição (administrador da REN), que assessorou o secretário de Estado, Franquelim Alves, e “cujo papel foi central” na preparação do decreto-lei dos CMEC (DL 240/2004) e da homologação dos acordos de cessação dos CAE em 2005, também Rui Cartaxo, adjunto de Manuel Pinho, “teve grande influência no processo de avaliação da extensão do domínio hídrico”.

“Rui Cartaxo manteve um fluxo permanente de informação com a EDP, como ressalta das peças do processo judicial remetidas pela Procuradoria -Geral da República à CPIPREPE, em que são reproduzidas comunicações que demonstram que Rui Cartaxo preparou directamente com a cúpula da EDP os termos do aconselhamento desta empresa ao ministro Manuel Pinho, que Cartaxo assessorava”, conclui o documento. Também demonstram que Rui Cartaxo “informou a EDP do andamento das diligências para a contratação das entidades bancárias a quem foram encomendadas pelo Estado avaliações do valor da extensão da utilização do domínio hídrico”.

Central a carvão de Sines

O DL 240/2004 que criou os contratos CMEC permitiu a possibilidade de prorrogação da operação da central a carvão de Sines (da EDP) para além do prazo previsto no antigo contrato de aquisição de energia (2017) “sem prever qualquer forma de compensação” ao sistema eléctrico. “No cenário base usado pela ERSE, a prorrogação da central de Sines por oito anos (até 2025) vale 951 milhões de euros”. O relatório recomenda que se legisle de modo a garantir a “recuperação integral do valor económico da extensão” dada a Sines.

A ERSE também deve proceder à avaliação do valor da extensão da operação da central do Pego, para além do prazo de 2021 previsto no CAE, para o caso da accionista, a Tejo Energia, pretender negociar o quadro económico de uma eventual extensão, diz o documento. Além disso, o Orçamento do Estado para 2020 deverá consagrar “a imediata aplicação a estas centrais de 100% da cobrança de ISP e, adicionalmente, um adicional ao ISP para os níveis de emissões” poluentes a vigorar “até à integral recuperação dos valores correspondentes à prorrogação da operação das centrais de Sines e do Pego”.

Terrenos da REN

O documento refere que os consumidores de electricidade pagaram cerca de 330 milhões de euros à REN para remunerar a empresa pela posse de terrenos do domínio público. A introdução desta remuneração “teve como única justificação a valorização da REN na perspectiva da privatização parcial da empresa” em 2007, refere o relatório, dizendo tratar-se de um custo de interesse económico geral (CIEG) “sem legitimidade”, porque “os consumidores pagam a um operador 100% privado pela detenção nos seus activos de um domínio público”. O relatório defende que se acabe com a remuneração dos terrenos.

Remuneração da Produção em Regime Especial (PRE)

O crescimento das renováveis trouxe “benefícios ao país (ambientais, de criação de empregos, de redução do preço da electricidade no mercado grossista)”. Porém, as “altas taxas de rentabilidade no sector tiveram um forte impacto na factura dos consumidores domésticos, sobre quem recai o sobrecusto da PRE”. O preço da tecnologia e o custo do investimento foi baixando significativamente face ao momento em que as tarifas garantidas haviam sido fixadas, permitindo rentabilidades mais elevadas aos produtores, sem que houvesse benefício para os consumidores.

O relatório recomenda que se peça à ERSE “o desenho de possíveis medidas que, de forma proporcional, permitam a recuperação” pelo sistema eléctrico (e logo, pelos consumidores) “das vantagens obtidas pelos produtores por efeito da rigidez” das tarifas subsidiadas “face aos ganhos de eficiência resultantes da demora da entrada em produção”.

Titularização da dívida tarifária

A dívida do sistema eléctrico nacional (SEN) à EDP (relativa ao adiamento do pagamento dos sobrecustos com a produção em regime especial ou dos acertos anuais dos contratos CMEC) beneficiou de taxas de juro demasiado elevadas tendo em conta o reduzido risco dos activos (as dívidas que tinham como garante o conjunto dos consumidores de electricidade). “O SEN acompanhou o custo de financiamento da EDP nos momentos de maior adversidade nos mercados financeiros para, logo a seguir, a EDP tirar todo o proveito da evolução positiva desses mercados”, diz o relatório.

Com as sucessivas vendas de tranches da dívida, a EDP obteve mais-valias que resultaram em lucros de 198 milhões de euros entre 2008 e 2017. O relatório recomenda que se legisle de modo a que haja partilha entre o Estado e a EDP de ganhos obtidos com operações de titularização da dívida tarifária e que esta medida tenha efeitos retroactivos, “de forma a recuperar para o SEN parte do saldo dessas operações”. A apropriação integral dos 198 milhões de euros “é indevida e injusta, devendo ser corrigida”, refere o documento.

Garantia de potência

O relatório diz que a eliminação, em 2018, do pagamento por disponibilidade das centrais (uma das modalidade das garantia de potência) “tornou clara” a suficiência das actuais garantias de segurança de abastecimento do sistema eléctrico. Estes pagamentos devem manter-se suspensos e deverão depender, no futuro, de “necessidades reais da segurança de abastecimento identificadas pela REN e confirmadas pela ERSE”. É tempo agora de olhar para a modalidade de incentivo ao investimento dado às barragens, “cuja conexão com necessidades concretas do sistema eléctrico está até hoje por justificar tecnicamente e cuja criação veio distorcer o quadro dos concursos do Plano Nacional de Barragens de Elevado Potencial Hidroeléctrico, levantando a questão da sua legalidade”.

Interruptibilidade

Entre 2011 e 2018, o serviço de interruptibilidade custou aos consumidores 727 milhões de euros, sem que tenha sido alguma vez necessário que os grandes consumidores industriais tivessem que desligar os seus consumos por questões de segurança do abastecimento. O relatório recomenda que o serviço seja revisto, mas que se proceda a uma “redução de custos no curto prazo, com a criação de regime concorrencial” (em que os industriais tenham de concorrer para poder aceder ao desconto da interruptibilidade) e a introdução de um tecto para os custos, “atendendo à potência interruptível que corresponda às reais necessidades” do sistema.

Os cortes de Henrique Gomes

“No contexto da aplicação do memorando de entendimento com a troika teve lugar um comprovado esforço do Governo” para “identificação e quantificação de rendas excessivas pagas aos produtores de electricidade”. Henrique Gomes era o secretário de Estado da Energia e até tentou introduzir uma contribuição extraordinária sobre os ganhos da EDP que chocou de frente com os objectivos do Ministro das Finanças, Vítor Gaspar. “A prioridade dada pelo Governo à medida do memorando que previa a privatização da EDP inibiu a aplicação do modelo de equilíbrio do SEN que o governo produziu no início do seu mandato” e “a concretização da privatização condicionou o perfil das medidas adoptadas”. Os resultados das medidas de corte nas chamadas rendas ficaram aquém do esperado: “Os 2048 milhões de euros positivos para o SEN correspondem a 60 a 68% do previsto pelo governo de então; quanto ao impacto das medidas sobre a EDP, os 718 milhões de euros negativos para a EDP (verificado + projectado até 2020) perfazem 40% da previsão do governo”.

Extensão das tarifas garantidas das eólicas

Em 2013, o Governo criou um novo regime de remuneração para os produtores de energia eólica, permitindo-lhes, mediante o pagamento de uma contrapartida fixa, até 2020, prolongar as tarifas subsidiadas por cinco ou sete anos, após o final dos prazos inicialmente previstos. “O impacto tarifário desta extensão de garantias” aos produtores “foi objecto de acesa controvérsia” na comissão. O relatório defende que é preciso regressar ao regime anterior, “assegurando a devolução aos produtores das contribuições voluntárias pagas até hoje, acrescidas dos juros respectivos”. A medida poderá custar cerca de 200 milhões de euros.

Manuel Pinho e João Conceição

O relatório refere que, ao longo dos trabalhos da comissão, “foram apurados factos sobre a actuação de Manuel Pinho [ex-ministro da Economia] e João Conceição [administrador da REN], arguidos no âmbito da investigação judicial decorrente da “Operação Ciclone”, que se somaram à informação extraída do processo judicial em curso e remetida à CPIPREPE pela Procuradoria-Geral da República”. “Esses novos factos apurados pela CPIPREPE foram comunicados à PGR e constam deste relatório, reforçando, e em nenhum caso contrariando, indícios que levaram à abertura do referido processo de investigação”.

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