A comichão faz comichão aos cientistas

Em menos de um mês, três equipas de cientistas publicaram estudos sobre a comichão e a vontade de coçar. Desde uma revisão das causas da comichão crónica à identificação de um grupo de neurónios que tem um papel importante neste ciclo, passando ainda por uma possível forma de travar a comichão usando a luz.

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Os mecanismos neuronais da comichão ainda são mal compreendidos Nelson Garrido

Para a maioria das pessoas não há um grande mistério na comichão e na vontade de nos coçarmos. É simples: se sentimos comichão, coçamos e a comichão passa. Mas o tema é bem mais complexo. Os cientistas têm tentado esclarecer os diversos mecanismos que são activados na incómoda comichão, principalmente na sua versão crónica associada a algumas patologias da pele. Prova do interesse por este assunto é que, em menos de um mês, houve três estudos publicados em revistas científicas sobre a comichão.

Acreditem ou não mas existe uma unidade de investigação chamada Centro para o Estudo da Comichão, criada em 2011 na Universidade de Washington, nos EUA. Os investigadores deste centro publicaram recentemente um artigo sobre a “biologia do ciclo comichão-coçar”, que apresenta uma revisão das causas conhecidas para a comichão crónica.

Não são os únicos interessados no tema. Uma equipa de investigadores financiados pela Fundação Nacional de Ciência Natural da China também publicou um artigo este mês na revista Neuron, do grupo Cell, que nos mostra alguns detalhes sobre como o cérebro nos diz para coçar o que nos faz comichão. Por fim, foi publicado ainda um terceiro trabalho sobre o mesmo assunto e, desta vez, os cientistas do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL, na sigla em inglês) colocaram o foco numa possível forma de travar a comichão usando a luz.

A universal e incómoda comichão é uma questão bem mais complicada do que pode parecer à primeira vista. Logo para começar, há múltiplas causas como, por exemplo, reacções alérgicas a produtos químicos irritantes ou a parasitas, ou doenças de pele (como a dermatite atópica). Se, por um lado, estamos perante um instinto de protecção contra um agente invasor – coçamo-nos para afastar a ameaça e limpar a pele – por outro lado, o facto de nos coçarmos também pode tornar-se em si mesmo um problema. Isso acontece quando nos coçamos ao ponto de nos agredirmos. O irritante ciclo quando estamos perante uma comichão crónica “pode prejudicar significativamente a qualidade de vida e levar a sérios danos na pele e nos tecidos”, avisam os investigadores que tentaram perceber como é que o cérebro nos dá a ordem de coçar uma comichão.

“Ainda não existe um tratamento para a comichão crónica, o que em grande parte se deve ao nosso conhecimento limitado sobre o mecanismo neuronal da comichão”, diz Yan-Gang Sun, investigador da Academia Chinesa de Ciências e um dos autores do artigo publicado na revista Neuron, num comunicado de imprensa sobre o seu trabalho. “O nosso estudo fornece um ponto de partida para decifrar como a comichão é processada e modulada no cérebro. Isto acabará por levar à identificação de novos alvos terapêuticos.”

Estudos recentes já tinham identificado subtipos específicos de neurónios no circuito da medula espinhal associados à comichão. Mas ainda pouco se sabe sobre as regiões do cérebro envolvidas no processamento desta sensação. Yan-Gang Sun e sua equipa suspeitaram de que a substância cinzenta periaqueductal (ou substância cinzenta central) poderia estar envolvida neste ciclo da sensação de comichão e do acto de coçar. Porquê? Esta região cerebral, explicam os investigadores, tem um papel crítico e bem conhecido no processamento de outras informações sensoriais relacionadas, como a dor. Como veremos mais à frente com os resultados dos outros estudos, a comichão e a dor têm mais pontos em comum.

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A comichão desempenha um papel de protecção Jing-Tao Miao

No estudo em ratinhos, os investigadores confirmaram que a actividade de um pequeno subconjunto de neurónios, localizados nesta região do cérebro, acompanha o comportamento de coçar evocado pela comichão. Como é que foi possível chegar a essa conclusão? Os animais foram induzidos a coçar-se através de injecções de histamina (substância produzida pela nosso organismo para resposta imunitária) ou de um fármaco usado no tratamento da malária chamado cloroquina. Nas experiências, os investigadores vigiaram a actividade de um conjunto específico de neurónios que produz determinados neurotransmissores, um chamado glutamato e um neuropeptídeo chamado taquicinina 1 (Tac1). Quando os investigadores desactivaram os neurónios que expressam a Tac1, o coçar induzido pela comichão diminuiu significativamente. Em contraste, a estimulação desse mesmo grupo de neurónios desencadeou o comportamento espontâneo de coçar, mesmo sem histamina ou cloroquina, activando ainda os neurónios do circuito da medula espinhal que tinham sido identificados em estudos anteriores.

No comunicado de imprensa do grupo Cell, Yan-Gang Sun reconhece que se sabe muito pouco sobre a evolução deste circuito, apesar da sua importância para a sobrevivência dos animais. “A sensação de comichão desempenha um papel fundamental na detecção de substâncias nocivas, especialmente aquelas que estão ligadas à pele”, lembra o cientista que adianta ainda que, em alguns casos, a lesão causada por coçar-se pode desencadear respostas imunitárias que, por sua vez, podem ajudar a combater as substâncias invasoras.

O próximo passo deste trabalho será investigar quais as moléculas neste grupo de neurónios cinzentos periaqueductais (que expressam a Tac1) que podem ser alvo de fármacos. A equipa vai também procurar outros pontos de ligação a esta sensação na complexa rede do cérebro. “Estes estudos vão ajudar a desenvolver novas abordagens ou novos medicamentos para o tratamento de doentes com comichão crónica”, conclui Yan-Gang Sun.

Usar a luz como travão

O estudo em ratinhos dos investigadores do EMBL também é dedicado às pessoas que sofrem de prurido persistente. “A comichão é seguramente uma das sensações mais irritantes. Para doenças de pele crónicas como o eczema, é também um sintoma importante. Embora garanta algum alívio temporário, coçar só piora as coisas, pois pode causar danos na pele, inflamação adicional e até mais comichão”, começam por justificar os autores do trabalho publicado na revista Nature Biomedical Engineering. O título do comunicado do EMBL é esclarecedor: “Usar a luz para travar a comichão”.

Linda Nocchi, Paul Heppenstall e outros membros da equipa de Roma do EMBL desenvolveram uma substância química sensível à luz que se liga apenas às células nervosas que estão na superfície da pele e que normalmente detectam a comichão. “O efeito do tratamento pode durar vários meses. E os outros tipos de células que existem na pele – que transmitem outras sensações como dor específica, vibração, calor ou frio – não são afectados pelo tratamento com luz”, referem no comunicado.

Nas experiências, aquele método mostrou bons resultados em ratinhos com eczema (dermatite atópica), e com uma doença de pele genética e rara chamada amiloidose. “A parte mais emocionante deste projecto foi ver as melhorias na saúde dos animais”, diz Linda Nocchi, primeira autora do estudo, que participou num outro trabalho que já tinha usado um método semelhante para controlo da dor através da luz. Por seu lado, Paul Heppenstall espera que, um dia, o método desenvolvido “seja capaz de ajudar os seres humanos que sofrem de uma doença como o eczema”. Para já, sabe-se que os ratinhos e os humanos partilham a mesma molécula-alvo para esta terapia da comichão crónica: uma proteína chamada interleucina 31 (IL-31). Um dos próximos passos será assim testar a terapia da luz em tecidos humanos.

Passando pelos intestinos

Por fim, há ainda o artigo do Centro de Estudo da Comichão, publicado na revista Trends in Immunology, também do grupo Cell. “Podemos pensar que as nossas respostas imunitárias terminam no sistema imunitário. Mas o ciclo comichão-arranhão liga o sistema imunitário com todo o corpo, interagindo com o comportamento e o ambiente também”, refere Brian Kim, dermatologista e imunologista da Escola de Medicina da Universidade de Washington e um dos autores do artigo que quis fazer uma revisão das causas conhecidas para a comichão crónica.

Mais uma vez, os especialistas sublinham que o problema não é tão trivial como pode parecer à primeira vista. “Num distúrbio como o eczema, um problema que faz com que a pele seque, a irritação é constante. Infelizmente, coçar-se apenas exacerba a comichão.” Ou, como diz a sabedoria popular, “no comer e no coçar o mal está em começar”.

A coagulação em resposta à irritação da pele danifica as células mais externas, libertando proteínas de sinalização, como as citocinas, que activam os neurónios sensíveis à comichão na pele, explicam os cientistas, acrescentando que esses neurónios produzem, por sua vez, sinais que desencadeiam inflamações e arranhões.

E, de novo, a relação próxima com a dor. “Acredita-se que algumas vias sensoriais de comichão e dor se sobreponham no sistema nervoso”, refere o comunicado de imprensa. O laboratório de Brian Kim dedica-se especificamente ao estudo das moléculas que poderiam ser os melhores alvos para terapias do prurido crónico. “As citocinas são alvos óptimos, mas não sabemos realmente se são os melhores alvos”, diz o investigador que também está a investigar se um equivalente do ciclo comichão-coçar no sistema imunitário pode estar por trás dos distúrbios intestinais causados pela inflamação dos intestinos. Quem diria que a comichão era um assunto tão complexo?

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