Pode haver independência obediente?

Apesar de parecer blindada na Constituição, a independência judicial é sempre um valor frágil e precário.

Há quem não perceba quando os juízes fazem finca-pé na defesa do seu Estatuto e reagem energicamente contra modificações da lei que põem em causa a sua independência, como se estivessem a reivindicar privilégios em benefício próprio. Não é isso. A independência judicial é uma garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos e do Estado de direito democrático.

Apesar de parecer blindada na Constituição, a independência judicial é sempre um valor frágil e precário. Para o demonstrar, fica aqui um exemplo que, podendo parecer insignificante, têm um potencial lesivo muito sério.

Antes da aprovação em Conselho de Ministros da proposta de lei do Estatuto dos Magistrados Judiciais, houve um processo de negociação política que permitiu eliminar muitas normas contrárias à independência dos tribunais, que no Verão passado tinham motivado uma reacção enérgica de contestação dos juízes. À cabeça, uma que, embora disfarçada com o nome de “dever de cooperação”, sujeitaria os juízes, na sua relação com o Conselho Superior da Magistratura, a um verdadeiro dever de obediência, exactamente igual ao dos trabalhadores da administração pública, em carreiras com hierarquia e direcção funcional.

Qualquer pessoa razoável e informada percebe que impor obediência a um juiz é retirar-lhe independência. Pois bem, talvez isso não seja assim tão óbvio.

Na proposta de lei surgiu, de surpresa, uma norma estranha que, se vier a ser aprovada, terá praticamente o mesmo efeito daquela que tinha sido expurgada. Pretende-se agora atribuir ao Conselho Superior da Magistratura um novo poder de "expedir instruções convenientes à boa execução e uniformidade do serviço judicial, sem prejuízo da independência dos juízes", e sujeitar quem desobedecer a procedimento por falta disciplinar grave, punível com multa, transferência ou suspensão. É evidente que a ressalva presente na proposta – "sem prejuízo da independência" – é apenas retórica. Quando um órgão da administração puder dar instruções vinculativas sobre a forma como os juízes desempenham a função judicial estará, por definição, a privá-los da sua independência.

Qual é então o sentido disto?

Na versão soft não há problema nenhum. O Conselho Superior da Magistratura é o órgão constitucional de protecção da independência, impermeável a possíveis influências externas e nunca emitirá instruções administrativas que interfiram na condução e decisão dos casos.

Mas quem garante que amanhã não surge um contexto favorável a uma leitura mais hard da norma? Que não se repete, por exemplo, a situação de 2009, em que o Conselho suspendeu ilegalmente a classificação de um juiz que tinha proferido decisões incómodas para o partido que designou os dois vogais que apresentaram essa proposta? Ou que, perante a ameaça de procedimento disciplinar, um juiz não fica vulnerável a instruções de serviço que levem a proferir decisões contrárias àquelas que de livre consciência tomaria?

O problema é mesmo este: o de se abrir uma porta que devia estar fechada.

Num caso levado ao Tribunal de Justiça da União Europeia pela Associação dos Juízes Portugueses, em Fevereiro deste ano, a Grande Secção declarou, pela primeira vez, que o tribunal europeu tem competência para avaliar a validade das normas nacionais que limitem as garantias de independência dos juízes dos Estados-membros. E reafirmou que "o conceito de independência pressupõe, nomeadamente, que a instância em causa exerça as suas funções jurisdicionais com total autonomia, sem estar submetida a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja e sem receber ordens ou instruções de qualquer origem, e esteja, assim, protegida contra intervenções ou pressões externas susceptíveis de afectar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões".

Tratando-se de um princípio consolidado, que pode agora ser também fiscalizado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, não parece muito sensato insistir numa solução que nos pode colocar do lado errado da história, junto a países como a Polónia e a Hungria, que têm revelado dificuldades em respeitar o direito fundamental dos cidadãos a tribunais independentes.

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