A crónica dos sapatos trocados

Finda a época festiva em que todos parecemos boas pessoas, regressamos agora ao quotidiano, e com ele voltam também as atitudes rudes que temos e sempre tivemos nas estradas, nas ruas, nos supermercados e em todos os outros lugares por onde vamos passando

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Um exercício: interrompe a marcha a um estranho e faz-lhe um pedido.

— Importa-se que eu experimente os seus sapatos?

Com a dose certa de sorte (e outra igual de simpatia), ele descalçar-se-á. Enquanto isso, fazes o mesmo. Terminado o processo, trocam ambos de lugar e fitam-se por um instante. Calças os sapatos do teu interlocutor, sem os moveres um milímetro do lugar onde ele os deixou. No momento em que o teu pé entra no sapato do desconhecido, sentes o odor acre dos seus pés. Não te demovas da tua empreitada — o aroma repulsivo é apenas um alerta biológico ultrapassado; além do mais, o estranho também se sentirá repugnado pelo teu cheiro. Acabas de calçar o par de sapatos e ergues-te, com toda a atenção focada sobre os teus próprios pés. Não apenas o olhar, mas principalmente o tacto. (Quando foi a última vez que deste conta do que é sentir o chão debaixo dos pés?)

Estás agora em melhores condições de apreciar o que é estar no lugar do indivíduo cuja marcha interceptaste. Ainda sentes o seu calor nos teus pés, há um desconforto nas palmilhas de um pisar que não é o teu, sentes-te ligeiramente apertado dentro daquele calçado. Mas, ao menos, estás satisfeito por saber algo tão íntimo quanto a posição individualista daquela perspectiva tão única e apenas repetível graças à compaixão mútua — que pessoa autorizaria que lhe calçasses os sapatos?

Finda a época festiva em que todos parecemos boas pessoas, regressamos agora ao quotidiano, e com ele voltam também as atitudes rudes que temos e sempre tivemos nas estradas, nas ruas, nos supermercados e em todos os outros lugares por onde vamos passando. Este é o acto animal que mais precisa de ser contrariado.

Ainda que muito nos custe a presença de um semelhante — que, afinal, até nem o parece assim tanto, a menos que lhe perscrutemos o olhar —, devemos manter sempre presente que ele o é. E que temos muito mais a ganhar em compreendê-lo que em segregá-lo. A humanidade fez-se por causa da comunicação, da unificação por via da palavra, do acto, do gesto. Hoje, como há milénios, e mais do que saber usar talheres ou conhecer as vantagens do polegar oponível, ser humano é contrariar a essência de bestas para nos enchermos de compaixão pelo outro. Um outro feito da mesma matéria estelar, das mesmas moléculas, da mesma carne.

Assim sendo, da próxima vez que atacares um próximo teu, lembra-te de optar por outra alternativa: demonstrar compaixão. Eis um acto violento, que contraria a tua natureza. Seja ele um amor desavindo, um empregado de hipermercado ou um estranho a quem nem és capaz de ver a cara escondida por detrás de um volante, qualquer um tem os seus motivos de acção e está a travar a sua própria batalha.

Da próxima vez que troçares do caminhar de alguém, lembra-te de lhe experimentar antes os sapatos.

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