Chiu, não se fala de suicídio

Temos de falar. Sempre, mais. Com um amigo, um desconhecido, uma cara-metade, até mesmo com uma audiência que não faz a mais pálida ideia de quem somos. Combater os preconceitos e partilhar as nossas histórias

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Há mais ou menos um ano, depois da publicação desta crónica, uma pessoa com quem nunca me tinha cruzado enviou-me uma mensagem: "Tenho apenas uma coisa para te dizer. Hoje ia suicidar-me, mas não o farei porque li o teu texto. Não sei se o farei amanhã, mas hoje não acontecerá, por tua causa". Sempre que me lembro delas — e é frequente —, estas palavras enchem-me de compaixão e é comum lembrar-me delas. Porque eu próprio já ali havia estado e sabia de cor aquele sentimento.

Talvez pela atitude mediática de pouco falar em suicídio, as pessoas replicam o estigma e atitude de silêncio: não se fala do amigo, do primo, do tio que se matou. Não é assunto que se tenha à mesa. E nós, os potenciais suicidas, queremos ser ouvidos, queremos deixar cair a culpa de nos sentirmos assim. Queremos mostrar que as dores de espírito não são uma moda, não são um estilo de vida. São uma condição inata provocada por um evento cataclísmico que nos transformou para sempre. Não farei a apologia do coitadinho, mas é urgente dar voz aos que não a têm.

Sim, nós. Nós, porque faço parte deles. Uma infância que não existiu, uma fuga constante de maldades que um pai cometeu sobre aqueles que, em condições naturais, mais deveria amar, a descoberta de que o ónus da culpa de tudo isto poderia recair sobre mim: eis os motivos que providenciaram a eventualidade de, há coisa de dez anos, quase me ter atirado de uma janela. Pendurado do lado de fora, arrependi-me a tempo de evitar tornar-me numa sopa de carne amassada e ossos quebrados. O preço, hoje, é o de ter dores existenciais indescritíveis. Dói viver, só porque sim. E, ainda que haja motivos racionais para que isto aqui tenha desembocado, não há razões para a emoção decidir que, numa quarta-feira à noite, haja pensamentos que apontem no sentido de acabar com tudo. “Não aguento mais, é hoje”, é comum ouvir a minha própria cabeça falar assim. Os meus mais queridos que descansem: sei que nunca o farei, mas também estou ciente de que a ideia não deixará de me habitar. Mesmo assim, prefiro viver. Sempre.

É preciso ouvir quem precisa de falar. É preciso respeitar um silêncio necessário. É preciso abandonar as mezinhas e as banalidades que se dizem à toa. É preciso deixar de se pensar que se tem a receita para a vida, especialmente junto daqueles para quem as dores são tão inexplicavelmente atrozes e a quem a morte soa a saída adequada. É preciso parar com os julgamentos e com a ideia feita (e tonta) de que sabemos resolver as vidas dos outros. Acreditem em mim — estas dores só se amenizam, de tempos a tempos, mas não se resolvem. É preciso saber das histórias, como esta, ouvi-las, compreendê-las, aceitá-las, abraçá-las, cuidá-las, acarinhá-las e encontrar espaços de conforto que demonstrem que há lugar para o sofrimento.

Nas raras alturas em que partilho este pedaço esconso de mim, o mais usual é ouvir as malditas palavras: "não tens motivos para estar assim", seguidas de um ror de argumentos que nada mais fazem senão agudizar a dor. O estado de espírito agrava-se porque se instala a culpa de se parecer ingrato perante a vida que se tem. Compreendam: pensar em suicídio ou ter uma depressão não é uma decisão consciente. Está lá, acorda connosco. É como se fosse um terceiro braço. Está ali e não pode ser amputado. Quão ridículo soaria isto: "tens de parar de ter essa dor de estômago, não faz sentido estares assim. Além do mais, comes muita coisa saudável, não há motivos para continuares com o estômago encalacrado com tanto sofrimento. Só te dói porque és estúpido". Parem, a sério.

Nós, contudo, não estamos livres de responsabilidades. Primeiro, temos de aprender, todos os dias, a conviver com isto. Aceitar que os pensamentos suicidas estarão por cá, à espreita, e que surgirão, outra e outra vez, sem hora marcada. Além do mais, há mecanismos que precisamos de encontrar para cuidar de nós mesmos. Ainda que doa, desaparecer é a medida drástica da qual, muito provavelmente, nos arrependeremos imediatamente após tentá-la. Bem sei que há esta gigantesca dificuldade em ligarmo-nos a outros, mas é preciso encontrar janelas nesta caverna escura. Descobrir algo que dê uma pontinha de gozo em tempos de desorientação, que nos ilibe de uma prisão solitária constante. Desporto, artes, qualquer coisa: há sugestões aqui.

E temos de falar. Sempre, mais. Com um amigo, um desconhecido, uma cara-metade, até mesmo com uma audiência que não faz a mais pálida ideia de quem somos. Combater os preconceitos e partilhar as nossas histórias. Sempre, mais. Os medos irredutíveis, as esperanças inalcançáveis. Tudo. Sempre, mais.

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