Mali: extremistas em "guerra contra os músicos de todo o mundo"

Cantores perseguidos, telemóveis com "ringtone" confiscados, um festival deslocado. Os extremistas que ocuparam o Norte do Mali travam uma nova batalha — "contra os músicos de todo o mundo"; o hip-hop assume-se como "força de mudança"

"Libertem o Norte", repete Kiss Diouara, "rapper" de 24 anos. No videoclip de “Liberer Le Nord” (em cima), entre imagens de manifestações e conflitos armados, Diouara reclama um outro Mali — “estável”, “capaz”, que respeite a “diversidade”. Issiaka Amkoullel, criador do grupo de músicos e activistas Plus Jamais Ça (Never Again), já lançou um S.O.S.. “Basta”, clama o colectivo Les Sofas de la Republique — “sofa” é uma palavra mandinga que remete para os soldados que serviram o Império do Mali entre os séculos XIII e XVII.

Enquanto que os músicos do Norte são silenciados e voam para Sul, na capital, Bamako, o hip-hop assume-se como “força de mudança”, à semelhança do que se passou no Senegal, relata o "Africa Review". Nos últimos tempos, as notícias que nos chegam do berço do “blues do deserto” são as piores. Não nos falam da “kora”, de lendas como Ali Farka Touré ou Toumani Diabaté, dos Tinariwen, das inúmeras colaborações destes músicos com artistas internacionais (basta pensar que Damon Albarn, dos "Blur", gravou em 2002 o álbum “Mali Music”). Não nos falam do inesgotável património musical do país. E agora os próprios músicos malianos estão a ser perseguidos.

Desde o golpe de Estado de Março que o Norte do país está em ruínas. Os extremistas do Ansar Dine, grupo com ligações à Al-Qaeda, um dos movimentos que tomaram a região, querem impor a “sharia” (lei islâmica). Mausoléus destruídos, apedrejamentos, amputações. Tombuctu (ou Timbuktu), cidade que viu nascer a lenda Ali Farka Touré, está na lista do património em risco da UNESCO e já houve luz verde da ONU para a intervenção militar (não deverá ter início antes de Outono de 2013).


Telemóvel com "ringtone"? Confiscado

Entretanto, ergue-se uma outra — já esperada, pela sua ligação ao Ocidente — frente de perseguição: os músicos e a música. A profissão deixou de existir, a arte também. Qualquer leitor é confiscado, bem como qualquer telemóvel, por vezes a maneira mais segura de ouvir música, com “ringtone” — logo substituído por versos do Corão, como contou à BBC Khaira Arby, “a Voz do Norte”, como é conhecida.

Agora em Bamako, a cantora não pode regressar a casa, a Tombuctu. Ameçaram cortar-lhe a língua se ela permanecesse na região. Os rebeldes invadiram-lhe a casa e, frustrados, destruíram-lhe discos e instrumentos, relata o El País. Os restantes músicos da banda também voaram para o sul. Como eles outras tantas dezenas. “Quando sonho com Tombuctu, acordo. Se penso em Tombuctu enquanto estou a falar, páro. O meu coração está partido. Tombuctu é tudo para mim”, confessou Arby ao The Age, em lágrimas.

O Festival au Désert, cujos grandes embaixadores são os Tinariwen, que ultimamente se realizava perto de Tombuctu, em pleno deserto do Mali, voltou à raiz nómada, depois de uma conturbada edição de 2012. Apresenta-se agora um pouco por todo o mundo em formato caravana. E mudou de nome — Festival au Désert in Exile.

"Em guerra contra todos os músicos" 

Mas mesmo na capital nem tudo são rosas, especialmente tendo em conta a crise económica e o ambiente social. Em Outubro, o The Guardian dava conta que alguns dos mais importantes espaços com música ao vivo tinham fechado. Vive o rap, entre ameaças, ainda assim. Amkoullel, rapper e activista, já conta com três. De morte. Mas quando o jornal britânico aborda a interdição da música, não poupa palavras: “Não precisamos que ninguém nos ensine a ser muçulmanos. Somos um país secular e tolerante, onde toda a gente escolhe a religião de acordo com o que sentem. E, em todo o caso, eles [os rebeldes] sabem que um Mali sem música é uma impossibilidade.”

Impossível ou não, parecem não esmorecer. O El Pais cita as declarações ao Washington Post do comandante rebelde Omour Ould Hamaha: “A música contraria o Islão. Em vez de cantar por que é que não lêem o Corão? Não estamos unicamente contra os músicos do Mali; estamos em guerra contra os músicos de todo o mundo.”

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