Uma semana alucinante

Merece o Presidente americano o crédito que se atribui a si próprio? A resposta não é imediata. Aparentemente, seguiu um padrão que parece ter resultado: utilizar o incomparável poderio militar americano e o seu gigantesco mercado de “último recurso” para criar as condições de uma negociação mais favorável aos Estados Unidos.

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1. Vivemos uma semana extraordinária. Começou com uma notável visita de Estado do Presidente francês ao seu homólogo americano, a primeira do seu mandato, que decorreu de uma maneira a muitos títulos inédita. Emmanuel Macron foi recebido por Donald Trump como um verdadeiro “amigo” e um velho aliado, sem que o Presidente francês tivesse de fazer a mínima cedência quanto às suas divergências com Trump e a sua política externa. Bastou ouvi-lo no Congresso, num discurso muito mais próximo da visão de Obama sobre a América e o mundo, do que a de Trump. Já se sabia, mas não houve da sua parte a tentação de cair numa linguagem “diplomática”, remetendo as divergências para as entrelinhas. Estavam todas nas linhas. O Financial Times faz-lhe um rasgado elogio. Trump também não cedeu praticamente nada, do Irão ao comércio, passando pela Síria. Quando recebeu Angela Merkel na Casa Branca para uma visita de trabalho, um acontecimento internacional verdadeiramente extraordinário estava a decorrer do outro lado do mundo. Teve como protagonistas os Presidentes da Coreia do Norte e da Coreia do Sul, reunidos na linha de demarcação do Paralelo 38 para prometer pôr fim à guerra da Coreia (50-53) e anunciar a desnuclearização da Península. O gesto de Kim Jong-un ultrapassou as melhores expectativas, mas ainda falta uma explicação completa das suas motivações. Sabemos que não se converteu num defensor da paz, mas já tinha dado alguns sinais de que a sua política poderia mudar. A questão que fica é saber se, desta vez, é a sério. Há, no entanto, uma nova realidade a partir da qual é preciso criar as condições para que não seja mais uma falsa partida. Enquanto víamos as imagens inéditas dos dois líderes coreanos a atravessarem a linha de demarcação de mão dada, Trump, ao lado de Angela Merkel, lembrava que, sem ele, o que o mundo estava a ver na Península da Coreia não teria sido possível, lamentando a falta de iniciativa dos seus antecessores, democratas e republicanos.

2. Merece o Presidente americano o crédito que se atribui a si próprio? A resposta não é imediata. Aparentemente, seguiu um padrão que parece ter resultado: utilizar o incomparável poderio militar americano e o seu gigantesco mercado de “último recurso” para criar as condições de uma negociação mais favorável aos Estados Unidos. Quando, em 2017, Kim acelerou o desenvolvimento de ogivas nucleares e dos mísseis de longo alcance capazes de as transportar até território americano, Trump respondeu-lhe à letra, lembrando que o seu botão nuclear era mil vezes mais poderoso do que o dele. O mundo começou a preocupar-se a sério com o risco de uma escalada incontrolável. A China aceitou aumentar a pressão sobre o seu cada vez menos obediente protegido, cortando alguns abastecimentos. Xi fez alguns gestos diplomáticos para mostrar que a sua política externa seria mais ambiciosa para não perder terreno numa zona onde quer competir com os EUA pela hegemonia. Aceitou falar directamente com Seul e adoptou uma posição mais construtiva em relação aos EUA. Aperta o regime internamente, enquanto o abre ao exterior. Mas o que é verdadeiramente novo nesta aparente “reconciliação” entre as duas Coreias, não é o encontro de sexta-feira passada. É o encontro de Kim com o Presidente americano, dando a Trump um papel central numa região em que a China quer ser a potência hegemónica. O encontro dos dois Presidentes é, justamente, aquilo que o regime de Pyongyang, (como o do Irão) mais ambiciona - de igual para igual com a única superpotência mundial. Kim mostrou a Pequim que não era tão dependente como se pensaria. Trump mostrou o “resultado” da sua política de força: obrigar os “inimigos” a sentar-se à mesa com ele. A Rússia ou o Japão foram marginalizados. Os dois Presidentes coreanos contam apenas com dois “fiadores”, obviamente imprescindíveis: os EUA e a China. Por mais dúvidas que subsistam, é por isso que o momento pode ser histórico e é diferente dos que se repetiram nos últimos 25 anos, que rapidamente deram em nada e que, alguns deles, foram explicados por condições internas que nem a dinastia déspota dos Kim poderia ignorar por demasiado tempo, de tal modo se degradaram as condições de vida dos coreanos, incluindo a fome. O que faz correr o último dos Kim é a questão que falta deslindar. Os EUA vão manter a pressão e espera-se que a China também.

3. Entretanto, a par das imagens de Trump e de Merkel na Casa Branca ou dos dois líderes coreanos em descontraída cavaqueira, víamos em directo outro acontecimento mais modesto, desta vez em Bruxelas, onde Mike Pompeo, já na sua qualidade de secretário de Estado, era recebido na sede da NATO. Disse ao que vinha: “Imediatamente depois da minha confirmação [no Congresso], tomei o avião para Bruxelas.” Havia um motivo: participar no Conselho do Atlântico Norte, na sua última reunião na velha sede da Aliança, que agora terá uma nova e muito mais moderna morada. Trump ainda não deixou de bater na mesma tecla: a Europa tem de pagar muito mais pelos serviços prestados pela América para garantir a sua segurança. A escolha de Pompeo para a sua primeira deslocação não deixa, por isso, de ter significado. De resto, as diferenças que Trump manteve com Macron sobre o Irão e sobre o comércio, repetiu-as com a chanceler. Mesmo assim, Merkel conseguiu o seu objectivo: demonstrar ao Presidente americano que, no que diz respeito à Europa, não a pode tirar da fotografia: tem de lidar com Macron mas também com ela.

4. O mesmo padrão poderia ser aplicado à ameaça de guerra comercial que hoje paira sobre o mundo, graças à mudança de 180 graus da política americana. É uma “guerra” sem armas nucleares, mas que pode ter consequências devastadores, incluindo a guerra. É o que a História do início do século passado nos ensina, apesar de o mundo viver nessa altura a sua segunda “globalização”. Trump começa por anunciar que tenciona rasgar a maioria dos acordos de comércio livre com vários parceiros económicos, desde a aliada Europa até à poderosa China. Pôs fim à Parceria de Comércio Transpacífica (TTP) com onze países da Ásia-Pacífico, negociada por Obama e que não incluía a China. Ameaçou Pequim directamente, aplicando as novas tarifas do aço e do alumínio. Apresentou aos chineses uma longa lista de produtos que passariam a pagar tarifas mais altas para entrar no mercado americano. Avisou a Europa de que não teria qualquer contemplação especial com os aliados, embora lhes tenha dado uma moratória que termina a 1 de Maio. Bruxelas já tem uma lista de produtos que poderá também taxar, desde a polpa de laranja à carne ou às Harley-Davidson. Por enquanto, apenas quer aliviar a tensão. Falta saber como. Os EUA funcionam como o mercado de último recurso para garantir as exportações de muitos países, sobretudo em época de dificuldades económicas. É isso que explica o seu défice comercial com quase todo o mundo, mas também parte da sua força. Xi mostrou-se disponível para encontrar uma solução e deu já um sinal de abertura para o sector automóvel. Macron e Merkel adoptaram um tom bastante mais conciliatório. Propõem que se mantenha a suspensão das novas tarifas para o aço e o alumínio e oferecem uma nova negociação que reduza drasticamente as já baixas tarifas dos produtos industriais que os dois países trocam entre si. Estamos a falar dos dois maiores mercados mundiais. Merkel quer continuar a vender os BMW e os Mercedes que Trump acha que vê em excesso nas estradas americanas. As ameaças são para “obrigá-los” a sentar-se à mesa, diz a Casa Branca. Tem tido algum resultado. Mas nada garante que se mantena, no longo prazo. As outras potências acabarão por reagir. O proteccionismo atingirá uma vasta classe média americana, cujos rendimentos estão há décadas estagnados mas que mantém o acesso aos bens de consumo, dado o seu preço baixo e a sua etiqueta “made in China”. O isolacionismo também já cobrou um preço muito elevado aos EUA. Quando, depois da Grande Guerra, a América se fechou sobre si própria, descobriu tarde de mais o que isso lhe custaria. Teve de voltar à Europa apenas vinte anos depois, para salvá-la de si própria numa guerra que se tornou mundial. 

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