Brasil: presunção de inocência ou impunidade?

Ver o Supremo Tribunal Federal a funcionar de forma transparente e pública constituiu um espectáculo fascinante.

“Hoje é um dia trágico para a democracia e para o Brasil. Nossa Constituição foi rasgada por quem deveria defendê-la e a maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) sancionou mais uma violência contra o maior líder popular do país, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.”

É assim que começa o comunicado oficial do Partido dos Trabalhadores, divulgado ontem, na sequência da decisão do STF que abre o caminho à prisão de Lula. O comunicado termina com a afirmação de que “o povo brasileiro tem o direito de votar em Lula, o candidato da esperança. O PT defenderá esta candidatura nas ruas e em todas as instâncias, até as últimas consequências. Quem tem a força do povo, quem tem a verdade ao seu lado, sabe que a Justiça ainda vai prevalecer”.

As questões relativas à judicialização da política ou à politização da justiça justificam debates fascinantes mas, neste caso, para além de todas essas questões omnipresentes, o que estava em causa em termos jurídicos era uma questão que não se discute em Portugal mas que é inequivocamente relevante: saber quando devem começar a cumprir pena os condenados criminalmente. Devem aguardar até ao chamado trânsito em julgado da decisão, isto é, até estarem esgotadas todas as possibilidades de recurso? Ou será que devem começar a cumprir pena logo após a condenação e aguardar a decisão final “lá dentro”? Ou, ainda, como sucede na justiça brasileira desde 2016, deverão os condenados começar a cumprir pena só depois de confirmada a decisão condenatória da primeira instância num tribunal de recurso?

Os sistemas anglo-saxónicos, eventualmente por terem na base – hoje em dia, em teoria – julgamentos com júri, determinam que os arguidos passem a cumprir pena logo após a condenação em primeira instância, aguardando a decisão dos recursos – de resto, bastante limitados – na prisão.

Nós, e o resto da Europa em geral, temos um sistema em que os arguidos condenados só entram na prisão quando esgotaram todos os recursos possíveis. Provavelmente, na base deste entendimento estará, entre outras razões, uma falta de confiança nas decisões da primeira instância. Certo é que no Brasil, como em muitas outras matérias, encontramos um sistema híbrido e em evolução.

Determina a Constituição brasileira que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" e foi à volta da interpretação desta pequena frase que se discutiu e discute se o cumprimento da pena se pode iniciar antes de a condenação ser definitiva.

Pese embora todas as idiossincrasias do sistema judicial brasileiro, a verdade é que ver o Supremo Tribunal Federal a funcionar de forma transparente e pública, com as declarações de voto de cada um dos 11 juízes ao vivo, constituiu um espectáculo fascinante, democrático e muito pedagógico.

Tive receio ao ver começar a falar o juiz Luís Roberto Barroso, por saber que tinha realizado estudos de pós-doutorado como visiting scholar na Universidade de Harvard, mas fiquei mais descansado quando soube que o trabalho por si publicado tinha como título “Here, there and everywhere: human dignity in contemporary law and in the transnational discourse” e não “Peniche capital do surf”. A sua declaração de voto – que concluiu pela admissibilidade da prisão de Lula – foi douta e acutilante: entre muitas outras coisas, lembrou que desde 2016 que o STF admitiu que é possível a chamada “execução provisória” da sentença condenatória, isto é, a prisão dos arguidos após a condenação em segunda instância, pelo que regredir nesse campo, para além de errado, seria muito grave em termos da confiança popular no sistema de justiça. Sistema de justiça em que, sublinhou, “se tornou muitíssimo mais fácil prender um menino com 100 gramas de maconha do que prender um agente público ou um agente privado que desviou dez, 20, 50 milhões”. E apontou exemplos em que a duração dos processos penais até uma condenação definitiva levou dez, 15 e mais anos, com prescrições pelo meio, expondo assim o falhanço do sistema de justiça, a impunidade dos delinquentes e a perda de credibilidade dos tribunais aos olhos da opinião pública.

Ninguém sabe como evoluirá a realidade brasileira, mas não tenho dúvidas que o STF, ao manter a sua anterior jurisprudência, procedeu com sensatez jurídica.

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