O que pode Portugal fazer pela Síria?

Existem várias maneiras através das quais Portugal pode influenciar o decurso do conflito ou, pelo menos, aliviar as suas consequências catastróficas.

Uma criança a ser resgatada dos escombros, outra ofegante após um ataque químico, e uma mãe que procura freneticamente pelo seu filho desaparecido depois de um ataque aéreo. Estas foram algumas das imagens do horror apocalíptico vivido em Ghouta Oriental, que deixou moralmente incapacitados e levam à mente dos portugueses a questão “O que posso fazer para ajudar?”. Esta pergunta convida a uma maior ainda: “O que pode Portugal fazer para ajudar?” Ou melhor, o que pode um país pequeno com recursos limitados fazer num conflito tão complexo que se arrasta no seu oitavo ano, e onde grandes potências mundiais e regionais procuram ativamente garantir os seus interesses estratégicos e geopolíticos?

Com toda a certeza, Portugal não tem uma palavra decisiva na Síria. E não pode simplesmente dispor de um tipo de intervenção no terreno, nem possui uma varinha mágica diplomática que obrigue os intervenientes do conflito a sentarem-se e negociarem um acordo de final de guerra. No entanto, existem várias maneiras através das quais Portugal pode influenciar o decurso do conflito ou, pelo menos, aliviar as suas consequências catastróficas.

A nível oficial, o Governo português poderia retirar valiosas lições e inspiração da sua recente história de sucesso de lobby diplomático, nomeadamente em Timor-Leste. Embora tenha sido um caso substancialmente diferente do da Síria em contexto, origem e atores, os objetivos poderiam ser semelhantes em essência. Através da sua posição em várias plataformas europeias e internacionais, Portugal pode exercer a mesma influência de lobby que o então primeiro-ministro e atual secretário-geral da ONU, António Guterres, conduziu para ajudar Timor-Leste a conquistar a sua independência em 2002. Tal esforço é desesperadamente necessário para produzir resoluções significativas da ONU e para garantir que, sob a pressão certa, estas resoluções se tornem vinculativas não só para Assad, mas também para os seus apoiantes russos que repetidamente têm usado o seu poder de veto para impedir ou reduzir qualquer ação contra o seu regime.

Da mesma forma, como membro da União Europeia, Portugal pode fazer campanha para que sanções mais duras sejam aplicadas à Rússia e ao Irão de modo a impedir o seu apoio político e militar a Assad. Poderia também referenciar a Síria para o Tribunal Internacional de Justiça ou pressionar os seus aliados da NATO para considerarem estabelecer uma zona de exclusão aérea em que os civis sírios possam encontrar um refúgio seguro contra o implacável bombardeamento aéreo. Tais medidas poderiam, pelo menos, pressionar Assad a comprometer-se com o cessar-fogo da ONU, abrir corredores humanitários e levar a sério as negociações.

Para além disso, o Governo português pode reforçar o seu compromisso com os refugiados. Apesar dos recursos limitados, um tremendo trabalho foi feito para receber os refugiados sírios que vieram para Portugal através dos programas de recolocação e reinstalação. Mas mais pode ser feito para que lhes seja proporcionada uma estadia segura e digna e facilitar a sua integração social e económica.

A nível público, incorporando o esforço individual e organizacional, a ajuda não é menos importante. Possivelmente, a primeira coisa que alguém em Portugal pode fazer é estar informado e tentar informar os outros para o que realmente acontece na Síria. O conflito sírio é “muito complicado” é o comentário mais recorrente numa conversa sobre a Síria. É compreensível tendo em conta as narrativas discordantes, o rápido fluxo de notícias e informações nos vários meios de comunicação, e a viciada máquina de propaganda russo-síria que tem trabalhado incansavelmente e sistematicamente para criar um estado de “quem está a matar quem e para quê?” entre as populações e os decisores políticos, facilitando o retrato do assassinato em massa de civis como sendo uma “guerra contra o terror”.

Outra coisa que pode ser feita é estar mais aberto e recetivo aos refugiados e tentar compreender as experiências traumáticas que sofreram, ao mesmo tempo que os ajudam a sentirem-se seguros, dignos e bem-vindos em Portugal. Um envolvimento mais direto pode passar pelo voluntariado para ajudar individualmente ou através de uma organização da sociedade civil portuguesa. Aqueles que têm capacidade podem contribuir financeiramente para organizações civis de confiança e ativas no terreno. Nomeadamente, os Capacetes Brancos, a Sociedade Médica Síria Americana (SAMS), a Equipa Molham e a Fundação Karam.

O quarto ponto coincide com o primeiro e aplica-se ao público e aos meios de comunicação; ajudar a espalhar a verdade. Isto inclui uma luta contra a propaganda goebbeliana nas redes sociais e noutros lugares, que tentam retratar os civis sírios e os trabalhadores da defesa civil como terroristas e, portanto, alvos legítimos. Inclui ainda chamar e desafiar publicamente os apologistas que, consciente ou inconscientemente, espalham informações falsas, encobrem genocídios ou, pior ainda, tornam-se impulsionadores indiretos e promotores da impunidade dos seus perpetradores. Estes podem ser jornalistas, académicos ou políticos que perderam a sua bússola moral enquanto defendem os contínuos crimes de guerra de Assad, protegendo-se através de teorias da conspiração, reivindicações de mudança de regime e sentimentos anti-imperialistas. Um exemplo recente e infeliz foi o voto apresentado no Parlamento português pelo Bloco de Esquerda (BE) em fevereiro, a condenar os crimes contra a humanidade de Assad em Ghouta Oriental. Ao contrário de todos os outros grupos parlamentares, o Partido Comunista Português (PCP) e dois deputados do Partido Ecologista Os Verdes (PEV) optaram por votar contra, chamando ao que a ONU descreveu como “o inferno na terra” em Ghouta uma “operação de media” que procura atrair uma intervenção dos EUA, Israel, França e Turquia, que conspiram para “dividir a Síria” e derrubar o seu legítimo governo. Embora a postura do PCP e PEV não seja única, mas antes coerente com a extrema-esquerda (e extrema-direita), deixa que a ideologia substitua e obscureça o seu julgamento moral. Este voto contra uma condenação básica constitui, no mínimo, uma vergonha para tudo aquilo em que Portugal acredita.

Pode-se finalmente questionar porque Portugal deveria ir tão longe na questão síria. A resposta é simples. Intervir para salvar vidas de civis não é apenas uma responsabilidade humanitária mas uma obrigação moral, especialmente para um país como Portugal onde a memória da ditadura ainda está vividamente presente, e onde um modelo de revolução inspirou uma onda de revolta contra a tirania ao redor do mundo. Nenhuma das medidas mencionadas acima é rebuscada ou muito dispendiosa, mas se for bem-sucedida, essa intervenção ficará na história como uma das maiores contribuições da diplomacia portuguesa. Isto promoveria Portugal a um ator diplomático pequeno, mas eficaz no cenário internacional, e ao mesmo tempo iria aproximá-lo de uma região que há muito tempo está ausente. Portugal deve intervir, não porque a Síria precise de outra intervenção estrangeira, mas porque necessita de uma intervenção credível e construtiva.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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