As carreiras curtas dos espetáculos

É preciso pensar, sem preconceitos e com dados empíricos, a questão das práticas culturais das pessoas.

No portal Coffeepaste (coffeepaste.com) perguntou-se recentemente a programadores e artistas o que pensavam sobre a curta duração das carreiras dos espetáculos. As respostas estimulam o debate sobre essa questão, há muito tempo motivo de conversa e de perplexidade quanto à melhor atitude a tomar. Este artigo pretende contribuir para tal debate.

Esclareço que, por diversas razões, considero curtas as carreiras com menos de 15 sessões no Teatro e menos de cinco na Dança, o que corresponde a três semanas num caso e a uma semana no outro. Não me ocupo aqui dos vários tipos de música. 

Numa localidade com um único teatro, ou pouco mais, é natural que as carreiras dos espetáculos sejam de muito poucos dias. É preciso que artistas das várias artes possam apresentar o seu trabalho e que as pessoas tenham oportunidades variadas de escolha. Tem que haver dança, teatro, músicas, com orçamentos parcos.

As carreiras breves são uso nos festivais. Aí se concentra num tempo magro uma série de espetáculos e outras iniciativas. A duração das apresentações conforma-se à duração do festival e à disponibilidade dos espaços em que decorre. Diferente vai ser, segundo li no PÚBLICO, a próxima edição do Festival Cumplicidades em Lisboa, dedicado à dança contemporânea, em que cada espetáculo terá sete sessões.

Quando se traz um espetáculo do estrangeiro, salvo casos de grande êxito de bilheteira em salas de dimensão compatível, não se pode ter muitas sessões, porque os custos disparam com as estadias e os “cachets”. Espetáculo estrangeiro está pouco tempo em cena.

Há casos em que os criadores, por motivos artísticos, pretendem que o seu trabalho tenha poucas apresentações. Se é essa a vontade de quem os faz, respeite-se. 

A efemeridade das carreiras é um problema sobretudo em Lisboa (e talvez no Porto, não sei) dada a abundância de festivais, a existência de várias salas, a maneira como organizam as suas vidas e as múltiplas solicitações que não são espetáculos. As maiores dessas salas têm uma atividade semelhante a um centro cultural, se se entender que um centro cultural se distingue por apresentar várias artes, mais ou menos intensamente, para pessoas de interesses muito variados. No centro cultural todos cabem, de artistas a público (em grosso; não entro em distinções sobre a política programática de cada centro). As carreiras são curtas para permitir essa variedade.

Em Lisboa a vida cultural é veloz, uma grande quantidade de acontecimentos muito diferentes surge todas as semanas em numerosos espaços. O frenesim é grande, as carreiras curtas ajudam à festa. As salas gostam de dizer que organizam centenas de iniciativas por ano e por isso são valorizadas. Procuram que haja sempre gente a visitá-las; o número de pessoas que por elas passa em múltiplas atividades é tomado como medida do seu sucesso e da sua utilidade.

A pouca duração de um espetáculo em cena tem vários inconvenientes, para os artistas e para o público. Para os artistas porque o esforço de um trabalho que pode demorar meses se esvai em poucas apresentações. Os espetáculos, todavia, só crescem e amadurecem em contacto com o público. Ao findarem abruptamente ficam incompletos. Há um esforço enorme na sua montagem para um resultado demasiado efémero. Porque as salas têm intensa ocupação, o tempo de palco para ensaios é pouco. Os artistas constroem as suas criações saltando de um lado para o outro, em residências e espaços de ensaio. Os cachets, porque as carreiras são pequenas, são baixos.

Os inconvenientes para o público decorrem, à uma, de não assistirem a espetáculos bem preparados e amadurecidos, à outra de não encontrarem disponibilidade para os ir ver durante a sua breve passagem. Quando podemos lá ir, já saíram de cena. Se queremos assistir a mais do que um, se ocorrem no mesmo dia, não conseguimos.

A adesão do público não está necessariamente ligada à duração das carreiras. Mas às vezes defendem-se carreiras curtas com o argumento, verdadeiro em certos casos, de que se fossem mais longas as salas estavam vazias. O espaço não me permite desenvolver este ponto. É preciso pensar, sem preconceitos e com dados empíricos, a questão das práticas culturais das pessoas. Ninguém ganha com salas vazias. Todos queremos salas cheias. Mas basta frequentá-las para se saber que muitas vezes não estão, mesmo com lotações pequenas e poucas sessões.

As carreiras curtas têm a vantagem de permitir que mais artistas trabalhem e possam apresentar as suas obras, em salas de maior renome, que têm mais dinheiro para lhes pagar (ainda quando pagam mal), que atraem mais pessoas. É a sua oportunidade de saírem de um circuito periférico. As carreiras curtas permitem que mais criações tenham palco. Para quem quer ver, mais espetáculos equivale a mais possibilidades de escolha.

Como é que eu acho que se deve fazer (e não fiz, quando estive na Culturgest; note-se que ali, como no CCB, as salas são também ocupadas por atividades não culturais, com repercussões na sua disponibilidade)? Acho que deve haver espetáculos nacionais de carreiras curtas e de carreiras longas (os estrangeiros devem ter poucas récitas). Essa orientação deve ser seguida por todos os teatros. Escolher quais os que devem ter mais apresentações é tarefa das direções artísticas e podem ser usados muitos critérios, que em abstrato vão, por exemplo, da sua dimensão à sua natureza, da pertinência da sua proposta ao currículo dos seus criadores ou ao número de pessoas que se prevê possam interessar-se. Deve considerar-se a hipótese de reposições na mesma sala, uns tempos depois da primeira série de sessões, no mesmo ano ou no seguinte. E, é claro, continuar a tentar que os espetáculos vão a outros lugares, no país e no estrangeiro, o que não é nada fácil e poucos conseguem. As coproduções entre vários teatros são um caminho que já se percorre, as redes que se estabelecem entre eles, com vantagens e inconvenientes, são outro caminho com provas. Reforçar os meios dos teatros fora de Lisboa parece-me ser crucial. Vale também a pena analisar, com base em dados que têm que ser recolhidos, se em Lisboa há ou não atividade a mais ou demasiado homogénea, coisa complexa de se fazer e para a qual falta informação.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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