Berlusconi: primeiro farsa, depois tragédia

Estas eleições são seguidas pelo mundo exterior com o interesse mórbido de quem vê um país andar aos círculos. Mas a história nunca se repete da mesma maneira.

Florença, Itália. A partir dos anos noventa este país passou pelo colapso do seu sistema político; pela descoberta de que muitos dos seus partidos estavam unidos por laços de corrupção ou mesmo por ligações com a máfia; pela subida ao poder de Berlusconi, um magnata dos media criado pelo regime anterior e que dominou o novo regime; pelo estabelecimento de um governo tecnocrático e de um governo de salvação nacional após a queda de Berlusconi; pela fugaz passagem pelo poder de Matteo Renzi, que prometeu mudar tudo num referendo ao sistema político, fez campanha com base no argumento “ou eu ou o caos”, e foi devidamente despachado pelo eleitorado, que suspeitava que o caos sem Matteo Renzi não era muito diferente do caos com ele. E no fim deste círculo, aquilo que começou com Berlusconi no poder prepara-se para terminar — daqui a uma semana, quando se souberem os resultados da eleição de próximo domingo — com Berlusconi no poder.

Visto de fora, Berlusconi sempre teve qualquer coisa de farsante. Mas este Berlusconi que regressa agora ao poder fá-lo de uma maneira muito mais perigosa. Utilizando habilmente uma lei eleitoral que favorece as coligações, juntou-se a um partido de extrema-direita (a Liga, antiga Liga Norte e Liga Lombarda, que em tempos foi separatista) e um partido fascistóide (com o nome de “Irmãos de Itália”). Como a lei permite que os partidos coligados recolham separadamente os votos que depois são contados juntos, é bem possível que a Liga que tenha mais votos no interior da coligação caridosamente chamada de “centro-direita” do que o próprio partido de Berlusconi. Se isso acontecer, a coligação que Berlusconi construiu para levar o seu partido ao poder acabará por ser a carroça que levará ao cargo de primeiro-ministro Matteo Salvini, líder da Liga.

Perante tudo isto, de que se fala na campanha eleitoral? Dos imigrantes. A economia italiana já vai na segunda década perdida. A sociedade perdeu os seus mais jovens e mais qualificados para a emigração. Mas não é de emigração que se fala. É de imigração, sobretudo se for africana e negra. Nem a Europa faz já o papel de papão que antes lhe estava atribuído. As propostas de saída do euro foram discretamente engavetadas após a derrota de le Pen nas eleições. Entre atacar os estrangeiros ricos de Bruxelas e os estrangeiros pobres de África, a extrema-direita já optou pelos segundos. Na escolha entre dois tipos de demagogia a extrema-direita italiana escolhe sempre a mais cobarde.

À exceção dos políticos, os italianos que encontro nas ruas parecem-me muito resignados à sua sorte. Pudera. De um lado, têm uma esquerda e um centro-esquerda que decidiram não ganhar, divididos entre o Partido Democrático de Renzi e um novo partido que reúne dissidentes do PD e figuras de outros partidos à esquerda do PD. Se fosse italiano, votaria provavelmente nos “Livres e Iguais” — é o nome desse novo partido —, mas ainda me custa a crer que permitindo a lei que concorressem separadamente mas que juntassem os seus votos no fim como coligação de governo, os partidos da esquerda e do centro-esquerda se tenham recusado a fazê-lo. Essa recusa não é apenas de um sectarismo tão gritante quanto o do Movimento 5 Estrelas, que também rejeita quaisquer coligações. Em face de uma lei eleitoral que foi feita para beneficiar as coligações, a recusa da esquerda em aceitar juntar os seus votos significa na prática pôr Berlusconi no poder. Ou, ainda pior do que isso, pôr os aliados de Berlusconi no poder.

Há uns anos umas eleições como as italianas seriam seguidas pelo mundo exterior com o interesse ansioso de quem veria o futuro da Europa depender delas. Já não é caso. Estas eleições são antes seguidas pelo mundo exterior com o interesse mórbido de quem vê um país andar aos círculos. Mas a história nunca se repete da mesma maneira. É primeiro como farsa, depois como tragédia, costumavam dizer os hegelianos. Aqui talvez seja ao contrário. Com o primeiro Berlusconi, a farsa já foi. Resta a tragédia.

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