Privatizações e Serviço Público

Qual teria sido o impacto nas contas públicas se o Estado apenas tivesse vendido uma parte destas empresas-chave sem ter perdido o seu controle?

Portugal é actualmente um país que está na moda, reconhecido internacionalmente pelo sol, clima acolhedor, belas praias, segurança e excelente gastronomia. Contudo, é uma pequena economia aberta, que mantém alguns desequilíbrios estruturais e, em particular, vulnerabilidades que decorrem do elevado nível da dívida externa que, como sabemos, esteve na origem do pedido de ajuda e do programa de austeridade.

Nos últimos anos, sucessivos governos, movidos pela necessidade de obter recursos financeiros e nalguns casos pela pressão de correntes de pensamento liberais, optaram por alienar as grandes empresas de serviços públicos: electricidade, gás, telecomunicações, serviço postal destacam-se pela sua importância estratégica.

Para além das razões de fundo que estiveram na origem desta decisão, a transferência para investidores privados de empresas que asseguram serviços essenciais ao suporte de um movimento de modernização e de desenvolvimento económico e social acarretou riscos que, nalguns casos, não terão sido devidamente ponderados. Na verdade, estamos a falar de serviços que satisfazem necessidade básicas que num Estado moderno e democrático devem ser disponibilizados às populações a preços acessíveis aos orçamentos mais débeis e com qualidade mínima.

Não se pode, contudo, criticar os privados, que se limitaram a aceitar o repto lançado pelo Estado, em condições pré-estabelecidas nos devidos cadernos de encargos e que, como cumpriram as condições impostas, se encontram plenamente legitimados para desenvolver a sua actividade.

O que está aqui em causa, e que sempre nos pareceu estranho, é que nestas recentes alienações o Estado português não tenha tido o cuidado ou a preocupação de limitar as eventuais aquisições por parte de privados, permitindo nalguns casos a alienação da maioria ou mesmo da totalidade das acções e desse modo perdendo o controle efectivo destas empresas.

É o caso, por exemplo, da Galp que detém a distribuição de gás e de combustíveis mas também a propriedade e a gestão das nossas duas únicas refinarias. A empresa encontra-se hoje na mão de privados que, ao cumprirem o caderno de encargos e as obrigações que então lhes foram propostas, terão toda a legitimidade para gerir a sua actividade como bem entenderem.

No caso da electricidade, que é um dos sectores que mais pesam no orçamento dos portugueses, estou convencido que, com os actuais accionistas, seria possível chegar a um consenso em relação a algumas tarifas ou medidas sociais destinadas a salvaguardar os cidadãos mais desfavorecidos.

O abastecimento público de água é outro sector que corre riscos que devem ser acautelados por se tratar de um bem de primeira necessidade e, ainda por cima, cada vez mais escasso. Actualmente, o Estado ainda detém o controle nas Águas de Portugal e é fundamental que assim se mantenha. Contudo, já não é o caso das várias empresas de abastecimento de água pelo país fora em que o Estado tem vindo a alienar as suas posições. Poder-se-á dizer que há sempre algum controle dos Municípios sobre este sector, mas o seu controle efectivo tem vindo perigosamente a passar da esfera estatal para a esfera privada, com os riscos inerentes que esta situação pode acarretar para a qualidade de vida e o bem-estar dos portugueses no futuro. 

Outro sector de que muito se tem falado ultimamente é o dos Correios. Neste caso, o serviço público prestado hoje em dia já não tem o peso de outrora, mas mantém a sua importância pelo serviço de proximidade, particularmente no interior do país. No entanto, a inclusão da licença bancária nesse universo, uma licença durante muito tempo congelada e agora entregue ao grupo que gere os Correios de Portugal, talvez tenha vindo a afectar negativamente o funcionamento regular do serviço postal e contribuído para a perda de qualidade que se sente hoje em dia. Durante muito tempo as estações de Correio prestavam alguns serviços financeiros simples mas, hoje em dia, podem prestar todo o tipo de serviços, como qualquer outro banco. Esta foi uma mais-valia que tornou mais atractiva a alienação dos Correios, mas que pode estar a induzir o desvio de investimentos a favor da actividade financeira, com prejuízo da sua missão principal.

Felizmente a ideia, em tempos ventilada, de privatização da Caixa Geral de Depósitos não foi por diante pois, se tivesse ido, o Estado estaria hoje também sem qualquer instrumento regulador do mercado financeiro. Inclusive, os seus clientes poderiam ficar entregues a uma gestão que apenas desse primazia à maximização dos lucros e perder a segurança que um banco estatal, melhor do que qualquer outro, pode garantir.

Ideal e estrategicamente, o Estado deveria manter uma Golden Share nestas empresas de serviços públicos, de primeira necessidade, de modo a poder proteger os seus cidadãos e a poder ter uma palavra a dizer na condução destes importantes sectores. Em particular, não se entende porque é que nos processos de privatização não foram criadas condições que permitissem a instituições de utilidade pública interessadas, como p.e. fundações, constituir núcleos accionistas capazes de contribuir para uma gestão mais preocupada com a qualidade do serviço público oferecido por estas empresas. Como desfazer agora o que foi feito, de modo a ainda permitir esse controle do Estado?

A situação é complicada pois existe um conjunto considerável de investidores estrangeiros que vieram adquirir uma posição nestas empresas com base nalguns pressupostos que não se podem agora eliminar. Se o fizéssemos seria o descrédito do país e uma forte ameaça para o futuro do investimento estrangeiro em Portugal. Apenas com muito diálogo se poderia tentar convencer os accionistas a aceitarem renegociar os pressupostos inerentes ao seu investimento inicial. No caso dos Correios talvez fosse possível, por exemplo, se se conseguisse separar o serviço postal da componente financeira, passando essa parte da banca generalista para outra rede de balcões e se permitisse assim que o Estado voltasse a tomar uma participação de controle no serviço postal.

É claro que é fácil de sugerir mas obviamente será difícil de implementar qualquer tentativa de inverter a situação. Especialmente sem o apoio de Bruxelas, que não tem esta visão e considera a Golden Share fora de moda. Contudo, não se pode assumir uma lógica puramente “financista” quando se estão a alienar serviços públicos essenciais, sem acautelar um mínimo de bem-estar das populações que, constitucionalmente, têm esse direito. Além de que seria fundamental que o Estado mantivesse nestas empresas uma administração que mereça a sua confiança, não só técnica mas também política (e não partidária).

Um bom líder tem de pensar a longo prazo — não só em termos de legislatura — e tomar decisões, com visão estratégica, de modo a proteger e a procurar o melhor para o seu povo, sobretudo quando estão em causa bens básicos e essenciais para o seu bem-estar. Se tivéssemos tido uma política mais firme, porventura poderíamos ter obtido alguma compreensão da troika para estas questões.

Qual teria sido o impacto nas contas públicas se o Estado apenas tivesse vendido uma parte destas empresas-chave sem ter perdido o seu controle? Se não se fez, esse deveria ter sido um estudo essencial a fazer porque, acima de tudo, se tem que olhar para estas questões sob o ponto de vista social e a médio prazo. O défice e a dívida externa são, de facto, muito importantes mas a vida das pessoas e o seu acesso a estes bens essenciais são-no ainda mais.

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