Nova geração de políticas de habitação: ninguém pode ficar para trás

É dever do Estado, ao elaborar e implementar políticas públicas, ter sempre em mente que não pode deixar ninguém para trás.

Num momento de mudança de paradigma, em que a carências antigas se juntam novos desafios, é particularmente relevante vermos o Direito à Habitação tomar proporções de prioridade nacional. O tema voltou a entrar na agenda política ao ser determinada a produção de novas políticas públicas e, por conseguinte, de programas que respondam não só a necessidades já sentidas, mas também a realidades sociais que hoje afectam diferentes faixas da população. 

Importa aqui saudar o trabalho já feito, quer pela secretária de Estado da Habitação, quer na Assembleia da República, em particular pela 11.ª Comissão Parlamentar e o seu Grupo de Trabalho da Habitação, no que toca à promoção da discussão pública sobre a Nova Geração de Políticas de Habitação. Este é um processo no qual a Câmara Municipal de Lisboa está claramente empenhada; no debate, na construção e na implementação da nova estratégia para o país, numa área fundamental para as pessoas. Mas é preciso relembrar como chegámos até aqui.

Durante décadas, em particular nos últimos dez anos, houve um total desinvestimento na área da habitação por parte da administração central, causando défice no número de fogos disponíveis a valores acessíveis para grande parte da população, bem como um aumento dos valores do arrendamento no mercado privado. Ao longo de décadas, recaiu também sobre as autarquias locais a responsabilidade de dar resposta às questões do Direito à Habitação. Não é sério nem legítimo que assim continue a ser. Quer por estas não possuírem todas as competências necessárias, quer porque se insiste no erro de manter o investimento em habitação pública a contar para o nível de endividamento das autarquias.

Ainda que a situação dos municípios seja díspar, a verdade é que todos nós sofremos mudanças abruptas. A cidade de Lisboa, hoje, nada tem a ver com a realidade dos anos 80 ou 90. Deparamo-nos com fenómenos como o da especulação imobiliária, o crescimento do turismo e do Alojamento Local, e as inerentes distorções que provoca esta junção de factores. A afluência extraordinária de visitantes é um motor de desenvolvimento económico, mas é também indesmentível o desequilíbrio provocado em certas áreas.

No entanto, de entre os vários factores que afectam a habitação importa salientar um: a lei 31/2012, a conhecida Lei das Rendas do anterior Governo, da responsabilidade de Assunção Cristas, que agudizou a precariedade dos contratos de arrendamento. E, não obstante o esforço feito já nesta legislatura para a alteração da lei, a verdade é que não foi suficiente; continuamos a ver famílias a serem despejadas em resultado da sua aplicação.

Se, nos últimos anos, assistimos a uma leve mudança na questão da habitação, substituindo-se a casa própria por casa arrendada, a realidade é que muitas famílias com empréstimos bancários, face ao empobrecimento generalizado verificado no período de austeridade, se viram em situação de não conseguir enfrentar os encargos. Acresce a isto que, apesar do esforço feito nos anos 80 e 90, sobretudo no PER, devolvendo a dignidade a milhares de pessoas, ainda subsistem carências nas camadas mais vulneráveis.

Em suma, as necessidades habitacionais atingem assim uma maior diversidade de população, estendendo-se agora ao segmento dos agregados com rendimentos intermédios. Não será possível resolver estas questões sem uma estratégia de habitação de âmbito nacional que cruze diversas áreas, nomeadamente a política de solos, matéria fiscal e de urbanismo. A criação de um novo quadro de políticas de habitação e respectivo programa-chapéu, que garanta o efectivo acesso ao direito consagrado na Constituição, é de vital importância.

Esta estratégia deve garantir o acesso à habitação à população em geral, mas tendo particular incidência nas pessoas afectadas por falta de condições de habitabilidade e populações em situação de emergência e extrema carência. Usando processos de realojamento que respeitem a relação territorial e a participação das populações, ou promovendo as intervenções necessárias nos bairros. Lembremos casos como o Bairro da Torre, o 6 de Maio, Santa Filomena, Jamaica, Terras da Costa. Ou os bairros EX-SAAL, como o Portugal Novo ou o Horizonte, que ainda não estão fechados. Ou mesmo os núcleos nos centros históricos cujas casas não reúnem as condições de salubridade e conforto necessárias.

Por outro lado, urge um investimento em habitação pública que aumente a oferta, com particular ênfase no arrendamento acessível. Para que este seja uma realidade importa promover a mobilização de propriedade pública para uso habitacional, nomeadamente o património da administração central, bem como uma política de incentivo aos senhorios para que, com a sua propriedade, se juntem ao esforço de promoção do direito à habitação. É fundamental também contar com o investimento privado neste objectivo prioritário de aumentar o número de habitações em arrendamento acessível.

Da promoção directa à definição de políticas fiscais que permitam a mobilização também dos privados para a construção colectiva do Direito à Habitação, é essencial a definição de regras que permitam regular o mercado, nomeadamente:

• Uma nova política de Reabilitação Urbana, com instrumento de financiamento adequado para incentivar os proprietários a requalificar o seu património, mantendo os inquilinos e praticando rendas acessíveis;

• Uma política fiscal modelada para promover o arrendamento de longa duração a valores acessíveis;

• Alteração do NRAU para acabar com a precariedade nos contratos habitacionais, introduzindo os contratos de longa duração;

• Definição do que é Alojamento Local/Turismo Habitacional, salvaguardando esta actividade quando exercida como complemento da economia familiar;

• Uma Lei de Bases da Habitação.

Em Lisboa olhamos para o Direito à Habitação com a importância que ele merece e a consciência dos desafios que enfrentamos. Com mais investimento, maior mobilização de meios. Continuamos a requalificação profunda e integrada dos bairros municipais, prosseguimos as intervenções no Padre Cruz e Boavista; intensificamos o programa de arrendamento acessível, com um dos maiores investimentos dos últimos anos em habitação pública. E fazemo-lo com as pessoas, com as forças vivas locais, pugnando pela coesão territorial. Com participação, proximidade e transparência: em co-governação. Estamos conscientes da importância do papel social que assumimos, da responsabilidade que advém de darmos resposta a mais de 75 mil pessoas que vivem em património municipal neste momento, em diferentes programas da autarquia. Mas é preciso fazer mais, conseguir dar mais amplitude a este esforço no âmbito de uma política integrada nacional.

Para alcançar este objectivo, é necessária a mobilização de diferentes actores, para que se possa dar resposta a diferentes necessidades: o sector privado, o sector da economia social e solidária. Mas nada substitui o investimento público. O cumprimento do preceito Constitucional no que toca à Habitação é da responsabilidade de toda a administração pública, seja ela central ou local. Para tal desígnio é fundamental que haja tradução orçamental correspondente.

Por último, importa ainda envolver as organizações, movimentos, cidadãos e cidadãs, em todas as frentes de discussão sobre esta matéria. E aqui permitam-me salientar de forma especial as associações e comissões de moradores. Não é possível produzir política pública sobre direitos fundamentais sem ouvir atentamente a quem nos dirigimos. "Habitação para o maior número", dizia-nos Nuno Teotónio Pereira. Porque é dever do Estado, ao elaborar e implementar políticas públicas, ter sempre em mente que não deve e não pode deixar ninguém para trás.

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