Da “bomba atómica” à marcha atrás

Puigdemont arrisca--se a provocar decepção nas suas fileiras sem que Rajoy o leve a sério. Resume o socialista Josep Borrell: “Evitaram a tragédia mas continuaram a comédia”.

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O presidente da Generalitat (governo catalão), Carles Puigdemont, faz marcha atrás à beira do abismo. Ao mesmo tempo que assume o “mandato do povo” para fazer da Catalunha “um Estado independente sob a forma de república”, emenda a mão logo a seguir anunciando a suspensão da independência para abrir “um processo de diálogo” e o caminho a uma mediação.

É uma complicada manobra. Terá querido, ao mesmo tempo, manter a coesão do campo independentista e não dar a Mariano Rajoy um pretexto para a intervenção do Estado na Generalitat.

Os primeiros títulos da imprensa internacional revelavam perplexidade: sublinhar a declaração de independência ou a sua suspensão? Josep Borrell, o antigo líder do PSOE que discursou na manifestação de domingo em Barcelona, resumiu assim o que se passou: “Evitaram a tragédia, mas continuaram a comédia”.

Puigdemont arrisca-se a provocar decepção nas suas fileiras sem que Rajoy o leve a sério. A resposta do Governo espanhol será dada hoje e não lhe interessa aplaudir a suspensão do processo — que interpretará como um recuo — mas atacar a declaração de independência. Por sua vez, os radicais da Candidatura de Unidade Popular (CUP, nacionalistas, anarquistas, anti-UE) lamentam a “oportunidade perdida” e alguns falam já em “traição”. Para a CUP e para as grandes associações independentistas, como a Assembleia Nacional Catalã ou a Òmnium Cultural, o cenário desejado era o do confronto aberto com o Estado para relançar o clima pré-insurreccional que se viveu nos dias do referendo (1-O) e da greve geral.

O “processo” independentista foi acelerado até à derrapagem. O govern catalão cometeu o erro de se ter deixado fazer refém da CUP. A Generalitat perdeu a margem de manobra. Ameaçou usar a “bomba atómica” da independência unilateral, convencida que só isso lhe permitiria falar com Madrid em posição de força. O recuo fere a credibilidade da arma e põe em causa a racionalidade da fuga para a frente. O independentismo sai provavelmente dividido e debilitado.

O choque da realidade

Houve vários factores que pesaram na “travagem”. O choque com a realidade foi muito forte. Depois da vitória política e mediática do 1-O, surgiram rapidamente as desilusões. Os independentistas permaneceram internacionalmente isolados. Depois vieram as grandes empresas, retirando as sedes da Catalunha. Por fim, a manifestação de domingo a favor da permanência na Espanha pôs em causa o seu monopólio da rua e tornou patente o risco de fractura da sociedade catalã. Entretanto, o discurso do Rei foi levado a sério pelas elites catalãs.

Houve muitos avisos e fortíssimas pressões da sociedade, designadamente dos próprios meios nacionalistas. Andreu Mas-Colell, um muito prestigiado economista e nacionalista, demitiu-se do govern quando Artur Mas abriu negociações com a CUP. Na noite do 1-O publicou no diário nacionalista Ara um texto demolidor sobre a condução do processo. Preocupava-o sobretudo a Europa e a coesão social da Catalunha. Dizia não querer discutir o princípio da declaração unilateral de independência (DUI). Mas era isto o que exactamente punha em causa. Dizia haver alternativas, como aguardar as eleições autonómicas ou fazer uma grande manobra: “Imagine-se que se anuncia, com uma certa solenidade e sem que signifique renúncia, a decisão de suspender, durante um ano ou dois, o recurso à unilateralidade.” Teria grande efeito na Catalunha, em Espanha... “e no mundo”.

E lança a farpa: “Pode argumentar-se que um fim de etapa épico [com a proclamação da DUI] tem valor. Não o discuto. Mas também pode ser um final patético. (...) Expor-se à penosa evidência de não poder contar com a plena obediência dos juízes, das polícias ou das empresas. (...) E, pior que tudo, seria fazerem a DUI à falta de outra coisa.”

Na manhã de ontem, o La Vanguardia publicava uma análise cruel do jornalista Enric Juliana, antevendo o que ao fim da tarde se passaria: “É provável que assistamos a uma declaração muito bizantina — sem votação — em que a independência se anuncia sem ficar proclamada. Um 1934 pós-moderno.” O 6 de Outubro de 1934 é o da proclamação e queda do “Estado catalão” de Lluis Campanys, ao fim de dez horas e vários mortos.

Os próximos tempos continuarão a ser perigosos. Nada foi resolvido. A ambiguidade da “renúncia” de Puigdemont tem um grande potencial de caos. É cedo para avaliar os efeitos completos do 10 de Outubro. É provável que haja “recomposições” na cena política catalã. O mais relevante será o equilíbrio de forças — já não entre “independentistas” e “constitucionalistas” mas dentro do próprio campo nacionalista. Há uma crescente divergência entre os partidários da independência unilateral e da “batalha na rua” e os que apostam num processo legal de acumulação de forças para uma futura solução negociada dentro da Espanha.

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