Deixem as pessoas dizer palermices!

O respeito pela homossexualidade é importante, com certeza. Tal como o respeito pela velhice e pela liberdade de expressão.

António Gentil Martins, um médico de 87 anos que ainda se deve lembrar do dia em que Adolf Hitler invadiu a Polónia e que já era trintão quando participou nos Jogos Olímpicos de 1960 (tiro com pistola a 25 metros), resolveu declarar numa entrevista ao Expresso que a homossexualidade é uma “anomalia”. Note-se que a homossexualidade foi efectivamente considerada uma “anomalia” até 1982, altura em que a sua prática deixou de ser criminalmente punida em Portugal, tinha então Gentil Martins 52 anos. Infelizmente, nas últimas três décadas e meia, Gentil Martins ainda não teve tempo para se habituar à ideia. É pena? Com certeza que é. Tratou-se de uma afirmação estúpida? Com certeza que se tratou. Como foi estúpido chamar “estupor” a Cristiano Ronaldo, classificar D. Dolores como uma mãe incapaz, ou embirrar com o sadomasoquismo. Só que Ronaldo e D. Dolores têm mais que fazer e os sadomasoquistas estão deficientemente organizados.

Vai daí, ficámos limitados às queixas do costume: os muito compreensíveis protestos públicos contra as declarações homofóbicas do senhor e os muito pouco compreensíveis gestos para o calar através de acções disciplinares. Parece que duas médicas (pelo menos) já requereram a intervenção da Ordem, exigindo um processo contra Gentil Martins. Subitamente, a coisa está a ficar bastante parecida com um caso de Novembro do ano passado, envolvendo a psicóloga Maria José Vilaça. Lembram-se? Vilaça começou por comparar a homossexualidade à toxicodependência, dizendo que se tivesse um filho homossexual iria amá-lo, mas que não era uma coisa natural. Eu argumentei na altura que a senhora deveria ter a liberdade de defender publicamente aquilo em que a sua fé católica lhe mandava acreditar. Contudo, logo a seguir surgiu na net um vídeo antigo onde Vilaça se propunha “curar” homossexuais no seu consultório. Quando esse vídeo apareceu, muita gente argumentou que uma psicóloga não pode propor a cura de homossexuais, porque a homossexualidade não é uma doença. Esse é um argumento que faz todo o sentido: Vilaça deveria ser investigada não por ter aquela opinião, mas por estar a impingi-la na sua prática clínica.

Contudo, como se pode ver agora pelas mesmíssimas reacções às palavras de Gentil Martins, o argumento do caso Vilaça só foi usado na altura porque era o que dava mais jeito entre os disponíveis. Com o crescimento da fobia às declarações homofóbicas, se esse argumento não serve, arranja-se outro. Gentil Martins não é psicólogo. É um cirurgião plástico e pediátrico. A não ser que ao longo das suas muitas décadas de prática clínica tenha andado a discriminar homossexuais no bloco operatório – “eu cá não separo esses gémeos siameses porque desconfio que no futuro vão ser exímios praticantes de actividades contranatura!” – não se percebe porque há-de a Ordem dos Médicos cair em cima de um quase nonagenário, nascido no tempo em que Salazar dava os primeiros passos no governo, e que já conquistou o seu lugar na história da Medicina portuguesa. Eu até desconfio que afastar de vez Gentil Martins dos blocos operatórios seja uma óptima ideia – mas não por causa das suas opiniões sobre a homossexualidade.

O mundo evoluiu. As convicções de Gentil Martins foram derrotadas. A homossexualidade tem aceitação generalizada. Para quê este fervor trauliteiro contra um homem que tem 87 anos? O respeito pela homossexualidade é importante, com certeza. Tal como o respeito pela velhice e pela liberdade de expressão. 

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