"Cada golpe, cada insulto lançado aos deputados foi sentido por todos os venezuelanos"

Oposição ao Presidente Nicolás Maduro voltou a encher as ruas de Caracas, apesar da repressão do regime. Assalto de milícias chavistas ao Parlamento condenado internacionalmente.

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Deputado da oposição Americo De Grazia socorrido depois de ter sido agredido no Parlamento Andres Martinez Casares/REUTERS

O violento assalto à Assembleia Nacional não pode ficar impune: “Cada golpe, cada insulto lançado contra os deputados foi sentido por todos os venezuelanos”, afirmou Helen Fernández, autarca da área metropolitana de Caracas que esta quinta-feira se juntou a milhares de manifestantes que voltaram à rua para exigir justiça para os membros da oposição e os funcionários do Parlamento agredidos por apoiantes do Presidente Nicolás Maduro no decurso das cerimónias comemorativas do Dia da Independência.

Convocada pelos diversos movimentos de oposição ao chavismo, a “marcha contra a ditadura” ganhou uma nova dimensão depois do último episódio de violência política na Assembleia Nacional. A invasão do Parlamento e agressão de legisladores da Mesa de Unidade Democrática (MUD) na véspera foi condenada por quase todos os países da América Latina, os Estados Unidos e a União Europeia. A Organização dos Estados Americanos convocou os embaixadores para mais uma reunião extraordinária urgente do seu Conselho Permanente. “Não podemos aceitar a violência institucional do Estado como a nova normalidade”, sublinhou o secretário-geral, Luis Almagro.

Em comunicado, o Departamento de Estado norte-americano condenou o ataque e “deplorou o crescente autoritarismo do Governo da Venezuela”, a quem lembrou o dever de “garantir protecção à Assembleia Nacional, tratamento aos feridos e justiça às vítimas da violência”. Do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos saiu um pedido “para que o povo da Venezuela só utilize métodos pacíficos para se fazer ouvir e renuncie à violência e ao ataque de opositores”.

Na sua conta de Twitter, a procuradora-geral Luisa Ortega Diaz, uma fiel do chavismo que se tornou uma das vozes mais críticas do Presidente no interior do sistema, confirmou a abertura de um inquérito ao ataque à sede da Assembleia Nacional, “que permita esclarecer a ocorrência e determinar as responsabilidades penais respectivas”. “Condeno este ataque ao Parlamento e faço um apelo para que cesse a violência”, acrescentou Ortega, a título de comentário pessoal.

Negociações não

Os organizadores da marcha desta quinta-feira repetiram o mesmo apelo. Antecipando dificuldades no acesso dos manifestantes à sede do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), o destino final da marcha, a organização traçou cinco rotas na capital venezuelana. Como sempre acontece, o regime suspendeu a circulação de transportes públicos no centro de Caracas, e bloqueou todas as ruas que levam ao Supremo, o órgão máximo do poder judicial que já assumiu funções legislativas e reclamou poderes investigativos ao Ministério Público.

Os participantes foram aconselhados a parar de marchar se se deparassem com barricadas das forças de segurança, o que veio a acontecer em vários pontos da cidade. “Se nos reprimirem, pararemos onde estivermos”, lia-se na convocatória. Além dos canhões de água e do gás lacrimogéneo das autoridades, os manifestantes foram impedidos de marchar por membros das milícias armadas (conhecidas como os “colectivos” chavistas) que defendem o regime. Em mais de três meses de protestos anti-governamentais já se registaram 108 mortes em confrontos, segundo a contabilidade do Observatório Venezuelano para a Conflitualidade Social - um número diferente do das contas oficiais.

Ainda que o slogan a acompanhar a convocatória fosse bastante explícito quanto ao objectivo do protesto desta quinta-feira, a MUD explicou que a mobilização serviria para denunciar as “acções inconstitucionais do Governo de Nicolás Maduro e do seu Tribunal Supremo”, principalmente a sua “pretensão de efectuar uma Assembleia Nacional Constituinte fraudulenta” para reescrever a Magna Carta aprovada em 1999 por Hugo Chávez.

Com a crise política ao rubro, nenhum dos lados em confronto – Governo e oposição – mostra interesse em negociar uma solução que permita pôr fim à instabilidade no país. A expectativa é de que a corda continue a esticar, nos próximos dias e semanas: o assalto à Assembleia Nacional ocorreu depois de a maioria ter aprovado uma proposta para a realização de um plesbicito informal, marcado para 16 de Julho, para que os venezuelanos possam dizer se concordam ou rejeitam a convocatória de uma assembleia constituinte, e se aceitam ou recusam a formação de um Governo de unidade nacional e a realização de eleições.

O Governo agendou para 30 de Julho a votação que determinará a escolha dos 540 constituintes que terão a responsabilidade de redigir uma nova Constituição para o país. Quando anunciou o processo, o Presidente Nicolás Maduro explicou que seria uma assembleia “chavista, cidadã, popular e trabalhadora”. “Não será uma constituinte de partidos e elites”,prometeu.

Vestidos de vermelho, armados com pedras, paus e tubos metálicos, dezenas de apoiantes do Governo, que se mantinham concentrados à porta da Assembleia Nacional para intimidar quem tentasse entrar, irromperam violentamente pelo edifício depois de ouvirem o vice-presidente Tareck El Aissami dar ordem ao povo para se levantar contra os “traidores” do legislativo.

Imagens que circulavam pelas redes sociais mostraram vários agentes da Guarda Nacional Bolivariana e da polícia a assistir às agressões dentro e fora do parlamento sem interferir. A actuação das forças de segurança está na mira da Justiça desde o fim de Junho, quando a Procuradoria intimou vários dirigentes de topo a prestar declarações por suspeita de violações dos direitos humanos na repressão dos protestos anti-governamentais – entre eles o director dos serviços secretos, Gustavo González, e o chefe da Guarda Nacional, Antonio Benavides Torres, que foram substituídos no cargo no âmbito de uma remodelação total das hierarquias das Forças Armadas promovida pelo Presidente.

A procuradoria está ainda a investigar denúncias de raides arbitrários ou detenções ilegais de manifestantes apresentadas por activistas e organizações de defesa dos direitos humanos. Mas não só os membros da oposição que têm sido alvo da repressão do regime. Documentação obtida pela Reuters revelou que, desde o início da contestação ao Governo, pelo menos 123 militares foram detidos e acusados de roubo, rebelião, insubordinação, deserção ou traição – como escreve a agência britânica, trata-se do primeiro retrato de “insatisfação e dissidência” entre as Forças Armadas venezuelanas.

Os ministérios da Defesa e da Informação recusaram prestar esclarecimentos sobre as detenções, que se registaram desde o início de Abril. Um ex-general citado sob anonimato interpretou-as como um sintoma e um sinal da “baixa moral, descontentamento e necessidade económica” que, tal como no resto da sociedade, também se sente nas fileiras militares. Na lista dos detidos, figuram soldados, sargentos, capitães e tenentes, sargentos – a maior parte está detida na prisão militar de Ramo Verde, nos arredores da Caracas, onde também se encontram vários líderes de oposição que reclamam ser prisioneiros políticos.

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