Axl cantou, Slash solou, os Guns N'Roses voltaram a sério

Bem mais de duas horas de música, com os clássicos em sucessão e aquele sentido de espectáculo rock que, anacrónico que seja, era exactamente o todos desejavam. Difícil mesmo foi chegar. Depois, os 57 mil presentes tiveram tudo a que tinham direito.

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Nuno Ferreira Santos
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Ainda as filas à entrada se alongavam consideravelmente entre as baías de segurança quando se ouviu um som conhecido. Não era ainda You could be mine, Paradise city ou November rain. Era som frenético-galhofeiro, era som de desenhos animados. O dos Looney Tunes que, sabe quem conhece bem os Guns N'Roses, antecedem a entrada da banda em palco. Lá dentro, ansiedade – “está quase a começar”. Lá fora, ansiedade igualmente, mas algo desconfortável – “está mesmo a começar e eu ainda na fila?” Eram 21h, meros quinze minutos depois da hora remarcada durante a tarde para o início do concerto. “It's so easy, easy / when everybody's trying to please me baby”. Começara mesmo. Com um clássico. Não seria de esperar outra coisa.

Os Guns N'Roses regressaram duas vezes depois de célebre concerto de estreia em Portugal, em 1992, no antigo Estádio de Alvalade, mas as actuações de 2006 e 2010 serão sempre menos perante o mais que se viu nesta sexta-feira no Passeio Marítimo de Algés. Mais porque esse foi o dia em que, 25 anos depois, vimos novamente em palco Axl Rose, Slash e Duff McKagan, coração da formação clássica da banda.

O público, na maioria composto por quem cresceu ou despertou para a música com Appetite for Destruction ou o duplo Use Your Illusion, estava ali para se reencontrar com a mitologia rock de antanho e com as canções que ajudaram a construí-la. Para se reencontrar a si mesmo naquela banda e naquelas canções, como se a passagem do tempo fosse ilusória e 1992 estivesse de volta. Havia fitas nas cabeças deles e delas e via-se o famoso logótipo dos revólveres e das rosas por todo o lado, quer nas t-shirts da actual digressão, Not in this lifetime Tour, compradas à entrada, quer nas recuperadas do armário e autorizadas, por um dia, a sair novamente à rua. Viveu-se um ambiente de festa na noite de lotação esgotada no Passeio Marítimo de Algés.

Desta vez, ao contrário de há 25 anos, não há peripécias para contar além da música ela mesma. O concerto, que contemplou mais de duas dezenas de canções durante bem mais de duas horas, foi exactamente o que era desejado. Slash solou e solou abundantemente, Axl cantou os “yeahs” de final prolongado e atacou os agudos, agora inevitavelmente um pouco menos agudos – passaram, afinal, duas décadas e meia –, enquanto meneava pelo palco com a agilidade possível. Duff McKagan, cabelo curto no lugar das antigas longas melenas em desalinho, mostrou que continua a ser o tipo mais cool da banda: tinha um símbolo púrpura de Prince no baixo, vestia uma t-shirt de Lemmy Kilmister e cantou uma versão de New rose, dos Damned, só para comprovar que é verdade o que escrevemos. E, claro, tivemos direito às canções e a ouvir a banda que as criou a tratá-las com a pompa e sentido de espectáculo rockeiro que lhes deu fama.

Primeiro It's so easy, como dissemos. A seguir a provocadora Mr. Brownstone, canção de esgar desafiante perante o abismo (é de heroína que se fala) e, depois, um desvio: o tema-título do álbum maldito da banda, esse Chinese Democracy cuja edição demorou uma longa eternidade – tanto tempo de espera quanto grande foi a desilusão aquando da edição. Mero contratempo. Era só uma canção, e mesmo no início do alinhamento. Ainda havia tanto para acontecer. E já ninguém se lembrava.

Eléctrico salvador

À medida que o final de tarde chegava e o concerto se aproximava, tornou-se evidente que, para muitos, não seria fácil chegar a horas ao Passeio Marítimo de Algés. A partir de Alcântara, o tempo previsto de viagem até ao recinto, de carro ou táxi, aproximava-se de uma hora. Fazia-se contas ao tempo, pensava-se nos Tyler Bryant & The Shakedown que já não demorariam muito, mas até podia ser que, mudando os planos, ainda se safasse a coisa. O comboio era uma alternativa, mas a fila para as bilheteiras electrónicas atravessava o túnel da estação de Alcântara, subia escadas rolantes acima e continuava na plataforma. Talvez não fosse esta sexta-feira o dia do reencontro com a banda que, em 2016, abrira o concerto dos AC/DC no mesmo local em que actuaram agora os Guns N'Roses. Mas, depois dela, ainda havia Mark Lanegan. E quem sabe, um eléctrico salvador. Eléctrico havia, mas o trânsito era o que se sabia – entupido – e os carris lá iam sendo percorridos lentamente, estação a estação. Daí que, chegados a Algés de eléctrico, comboio, táxi ou automóvel particular, tantos estivessem ainda à porta de entrada quando se ouviram as Looney Tunes e o It's so easy que inaugurou o concerto dos Guns N'Roses.

Pouco a pouco, todos os cerca de 57 mil que o presenciaram, desde a frente do palco até à zona de restauração, onde muitos subiam às mesas, ganharam vista para o palco e para os ecrãs gigantes que o ladeavam. Viam os Guns N'Roses, tal como nos lembrávamos deles – essa foi a maior virtude do concerto, a de lembrar de diversas formas os Guns N'Roses do seu período áureo.

Fieis à ideia de rock enquanto espectáculo bombástico, palco para virtuosismo e demonstração de grandiloquência, os Guns N´Roses trouxeram os jogos de pirotecnia real a pontuar algumas canções, e a pirotecnia simbólica de, por exemplo, Slash, o regressado, o mais aplaudido aquando da apresentação da banda, a subir à plataforma elevada no palco para um solo, por vezes partilhado com o segundo guitarrista, Richard Fortus (que, muito curiosamente, dava ares de Ron Wood), ou, para delírio da multidão, para atacar a versão do tema de O Padrinho que se tornou um clássico dos concertos clássicos da banda.

Perante nós, rock de estádio à antiga, com tudo o que tal tem de anacrónico – sendo que, na verdade, os Guns N'Roses já tinham algo de anacrónico quando viveram o seu período de maior sucesso. Eram uma banda que respirava o excesso e a decadência glamorosa dos clubes rock de Los Angeles de finais da década de 1980, que vestia a pele dos seus heróis, como os Led Zeppelin, mas que, ainda que conhecedora e devota das discografias punk, nunca tenha escondido uma ambição do tamanho de Wembley (o dos Queen). Todos esses elementos estiveram presentes no concerto.

Ouviram-se versões, como a supracitada New rose, como as obrigatórias Knocking on heaven's door, de Bob Dylan, ou Live and let die, de Paul McCartney, a que há muito apuseram a sua assinatura. Houve espaço para uma deslocada versão instrumental de Wish you were here, cujo propósito no alinhamento é insondável, para uma Whole lotta Rosie, dos AC/DC, a relembrar, como introduziu Axl Rose, o que aconteceu naquele lugar o ano passado, ou para uma reverente Black hole sun que, na ressaca da morte inesperada de Chris Cornell, o vocalista dos Soundgarden, foi recebida como bem-vinda homenagem (com coro a acompanhar).

Mas aguardava-se, essencialmente, a obra própria, como Welcome to the jungle, letra entoada pelo público palavra a palavra, ou a riffalhada hard-rock de You could be mine. Ergueram-se os telemóveis quando Axl Rose se sentou ao piano para nos introduzir pela balada épica chamada November rain – telemóveis ao alto para gravar o momento, como já se tinham erguido quando Slash tocou as primeiras notas de Sweet child o'mine, como se ergueriam novamente, telemóveis e vozes, para acompanhar a balada acústica Patience.

Axl Rose falou o indispensável, apresentando-se ao público, apresentando a banda, comentando a bela noite que estava a viver. Slash foi Slash (cartola na cabeça, óculos escuros, cabelo sobre o rosto), com todo o protagonismo que o estatuto de mais adorado pelos fãs lhe confere: solou sem restrições, ora naquela posição característica de guitarra na horizontal apoiada na coxa, ora citando o Johnny B. Goode de Chuck Berry, ou o Voodoo child de Jimi Hendrix. A banda, muito competente, mostrou o seu profissionalismo imaculado, sem falhas a registar, sem desvios ao guião – as canções são, muitas vezes, reproduções fidelíssimas dos registos de estúdio, o que esconde a possibilidade de um rasgo que ilumine, mas aumenta a segurança do reconhecimento (Dizzy Reed, o teclista histórico, manteve a sua histórica discrição, a segunda teclista, Melissa Reese, foi suporte imprescindível de Axl Rose nos coros, e Frank Ferrer, o baterista, a âncora que assegurava que o barco se mantinha firme em todas as ocasiões).

Concerto adiantado, apareceu a Night train alimentada a “cowbell” e, na sequência dela, deu-se um encore que não chegou a ser – a banda regressou num ápice, de guitarras acústica a tiracolo, para Patience. Em seguida, abriu-se uma clareira entre o público para um casal dançar, muito rock'n'roll, a Whole lotta Rosie dos AC/DC, e, depois, ouviu-se a batida sincopada que todos reconheceram imediatamente. Era a canção que faltava, era Paradise city que chegava.

Luzes a piscar intensamente no palco, pirotecnia a explodir, Slash a tocar a guitarra atrás das costas, Axl Rose a atirar o microfone como oferenda ao público, Duff McKagan a sorrir muito feliz. Uma vénia e um adeus: 57 mil pessoas de nostalgia saciada a iniciar o regresso a casa, 25 anos depois. Desejando que partir não fosse tão difícil quanto tinha sido chegar.   

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