Trump não percebeu que não há “homens fortes” em democracia

É cada vez mais urgente que alguém tente explicar a Donald Trump que o destino dos “homens fortes” nas democracias liberais é tornarem-se rapidamente “homens fracos”.

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1. Para compreender os dois últimos escândalos que rebentaram em menos de 24 horas é preciso recuar até 10 de Maio, o dia seguinte à demissão do director do FBI. Nesse dia, Trump recebeu na Sala Oval o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, na companhia do embaixador da Rússia em Washington, considerado pelos serviços de informações o “espião-em-chefe” do Presidente russo. Para além da visível provocação, o erro de Trump foi ter proibido o acesso à imprensa americana acreditada na Casa Branca, abrindo as portas apenas aos jornalistas russos que acompanhavam Sergei Lavrov. O que Trump não previu foi que as fotos da imprensa russa iriam ser divulgadas pela Tass, diligência do Kremlin, mostrando os três em amena cavaqueira, precisamente quando o dossier russo voltava a eclodir por via da demissão abrupta de James Comey. Não se sabia ainda, nem sequer se suspeitava, da “bomba” que rebentaria na passada segunda-feira. A história era do Washington Post, confirmada por outros órgãos de comunicação social. Trump teria prestado a Lavrov informação supersecreta sobe o Daesh. Depois de quinze dias verdadeiramente alucinantes, o Presidente conseguiu a proeza de subir mais um degrau (ou dois ou três) na sua escalada numa direcção que se apresenta cada vez mais incompatível com o que as regras da democracia americana e com as suas responsabilidades internacionais. O general McMaster, conselheiro nacional de segurança e testemunha ocular, veio a terreiro garantir que “não foram discutidas fontes, métodos ou operações militares”, durante o encontro. Já devia ter aprendido que Trump não hesita em ignorar o que dizem os seus conselheiros, mesmo em matéria altamente sensível. O Presidente declarou-se com “o direito absoluto” de partilhar informação com quem achar necessário. Poucas horas depois, rebentava mais um escândalo. Desta vez foi o relatório de James Comey sobre o seu encontro de Fevereiro na Casa Branca, revelando que o Presidente lhe tinha pedido para pôr fim à investigação a Mike Flynn, o antecessor de McMaster, com uma proximidade à Rússia que não fazia prever nada de bom. Justificação: “ele é um bom rapaz”. Agora, é o próprio Congresso que quer ver esse relatório, mas também tudo o que houver sobre o encontro com Lavrov. Não tem outro remédio. É visível o crescente incómodo de muitos congressistas republicanos, que começam a temer que os estilhaços provocados pelo seu Presidente acabem por cair-lhes em cima. Dizem desta hipotética troca de informações com a Rússia que é “perturbadora”. Os democratas classificam-na de muito grave, mesmo que tenham o cuidado de acrescentar “se for verdade”. Mas o dossier russo engrossou de tal modo que quase ninguém pode opor-se a uma investigação a sério, mesmo que ninguém saiba ao certo a que levará. É uma bomba ao retardador. Mas ainda não estamos na fúria do impeachment, que ninguém quer, mesmo que por razões diferentes.

2. Até quando? Ontem, chegava do Kremlin a mais chocante das humilhações: Putin oferecia-se para divulgar os registos do encontro de Trump com Lavrov para mostrar como são falsas as acusações ao seu amigo americano. É caso para perguntar se Trump ainda não percebeu que Putin é um mestre da manipulação, no qual não é conveniente confiar? Ou estará de mãos atadas? É esta última hipótese que ninguém quer sequer considerar. A Rússia está longe de ser vista pela opinião pública americana de forma favorável graças à memória da Guerra Fria. O mundo, aliados e inimigos, olha com crescente preocupação para o que se passa em Washington. Foi visível o incómodo de Israel (provavelmente a origem da informação que Trump partilhou) que não brinca com estas questões. Na Europa a incomodidade foi mais moderada. Os EUA continuam a ser fundamentais para todos os níveis da segurança europeia.

3. De escândalo em escândalo, a questão é saber até que ponto Trump desilude os seus próprios apoiantes. A sua popularidade está em queda visível, mas é difícil avaliar até que ponto. Há uma vasta classe média americana que continua a viver bem nos subúrbios das grandes cidades, com uma qualidade de vida invejável, rodeada de relva, de árvores frondosas e de pássaros, a quinze minutos (de carro, naturalmente) de tudo o que é bom para ser consumido, que facilmente aceita a ideia de que quem se esforça continua a ter o direito ao sonho americano e que se interessa pouco pelo mundo lá fora. Viu os seus rendimentos “espremidos” nas últimas décadas, mas não ao ponto de pôr em causa a sua qualidade de vida. Até que ponto esta classe média, independentemente de ter votado Hillary ou Trump, se sente ameaçada pela loucura instalada na Casa Branca, é difícil de medir. Os protestos diários já perderam intensidade, mesmo que haja uma preocupação crescente com os cortes significativos que a administração tenciona aplicar aos dois principais programas de financiamento público na saúde: o Medicaid e o Medicare. No fundo, podem perguntar-se a si próprios o que ganha a América, quando um estudo recentemente diz que o número de mulheres que morrem durante o parto é três vezes superior à média das democracias desenvolvidas. No país mais rico e poderoso do mundo, não faz grande sentido para ninguém.

Mesmo assim, é cada vez mais urgente que alguém tente explicar a Donald Trump que o destino dos “homens fortes” nas democracias liberais é tornarem-se rapidamente “homens fracos”.

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