Radu Jude filma o passado que nos persegue no presente

Scarred Hearts, um dos grandes filmes de 2016, é mostrado no IndieLisboa, depois de o cineasta romeno ter vencido o festival em 2015.

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Scarred Hearts Silviu Ghetie
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Scarred Hearts Mihai Chitu

“O cinema português, para mim, é mais interessante do que o cinema romeno”, diz um dos mais interessantes cineastas romenos contemporâneos, Radu Jude (n. 1977), citando os nomes de Pedro Costa, Miguel Gomes ou João Pedro Rodrigues. O local é uma esplanada de um pequeno hotel na “cidade velha” de Locarno, em Agosto último, onde Jude mostrava a sua quarta longa-metragem, Scarred Hearts, que venceria dias mais tarde o Prémio Especial do Júri do festival suíço. O PÚBLICO perguntava então sobre a cena fervilhante do cinema romeno, e o realizador respondia com algum cansaço. “Não é assim tão romântico, sabe... Sim, há muita gente talentosa, mas não nos damos muito uns com os outros. Há competição, inveja, não há grandes colaborações... E há muitos filmes que não são vistos fora da Roménia, por isso a percepção pode ser muito diferente no estrangeiro. Tenho a certeza de que em Portugal é a mesma coisa.”

Jude, presença regular no IndieLisboa ao longo dos últimos dez anos, tem de facto vindo a afastar-se da “fórmula romena”. O romeno venceu a competição de curtas do festival lisboeta em 2007 com Lampa cu Caciula, e mostrou as suas primeiras três longas a concurso entre nós — depois de The Happiest Girl in the World em 2009 (prémio FIPRESCI) e Everybody in Our Family em 2012, Aferim!, neo-western formalista rodado a preto e branco e passado no século XVIII, foi o vencedor do Grande Prémio em 2015. À quarta longa, Jude já não pode apresentar-se a concurso, mas o Indie incluiu na sua programação Scarred Hearts (São Jorge, quinta-feira, dia 4, 18h45; e domingo, 14, 17h30). É uma ocasião rara de ver um dos grandes filmes de 2016 que ficou por estrear nas nossas salas: uma adaptação do livro semiautobiográfico do surrealista romeno Max Blecher (1909-1938), inspirada pela sua estada num sanatório à beira-mar.

Ficcionando a história de um jovem universitário internado para curar a sua tuberculose vertebral, Scarred Hearts foi rodado no formato 1.33:1 do cinema dos anos 1930, no exacto hospital, hoje abandonado, onde Blecher esteve. Decorre em 1937, ano da publicação original do livro, e reproduz na perfeição o perfume de “fim de um mundo”, de “última festa antes da guerra”, que parece falar aos nossos dias de um passado com lições para nos ensinar. O filme faz a ponte com o modo como todos os anteriores filmes de Jude abordavam os “atavismos” culturais do seu país. “Isso tem que ver com o meu interesse pela história da Roménia”, explica o realizador. “Pelo passado da Roménia e, sobretudo, pelo passado escondido no discurso público. Interessa-me mostrar a relação entre as pessoas e as coisas que vêm do passado. Isso não quer dizer que tenha uma vontade deliberada de agora só fazer filmes de época; são coisas que surgem naturalmente, a partir do que penso, do que leio. Mas sim, o livro de Blecher apanhava qualquer coisa que estava no ar na altura e que hoje sabemos ter realmente sido o fim de um mundo.”

É inevitável lembrarmo-nos da Montanha Mágica, de Thomas Mann, publicada em 1924, também ela ambientada num sanatório — e por aí chegamos à Morte em Veneza, de Visconti, baseada em Mann, e ao Navio, de Fellini, obras que transpiram também essa ideia de requiem por um mundo. “Thomas Mann é uma referência evidente”, confirma Jude, “mas o livro de Blecher é mais modesto e mais directo, enquanto A Montanha Mágica é mais filosófico. Percebo porque fala do Navio, que me impressionou muito quando o vi, mas no qual não pensei. Visconti? Compreendo, mas nem por isso... Pensei mais em Jean Renoir, sobretudo nos seus filmes dos anos 1930, e em particular na Madame Bovary, em que tentou misturar cenários e figurinos realistas com uma representação artificial e literária. Foi esse tipo de contraste dialéctico que procurei ter, entre o realismo dos corpos e a artificialidade do cinema e da linguagem.”

Jude explica que essa procura surge também da sua recente passagem à encenação teatral: “O que gosto no teatro é que as convenções são muito fortes, mais ainda do que no cinema, e gosto de jogar com elas. Scarred Hearts é rodado em 1.33:1 porque muitas destas personagens passam o filme deitadas na cama, e quis ter um espaço vertical no filme, criando um simbolismo, talvez excessivo, que me interessava. Tinha também vontade de regressar à fonte do cinema primitivo, Lumière, Méliès, Griffith... Houve muitas coisas de grande riqueza nesse período, e foram deixadas para trás demasiado depressa.” Scarred Hearts, no entanto, é um filme sobre pessoas cuja saúde frágil os limita a viver no mundo das ideias, das palavras. “É verdade! Blecher tinha lido os primeiros estudos sobre a filosofia da linguagem, e eu penso, como Rohmer, que a linguagem tem um lugar no cinema. Não acredito que o cinema deva ser mudo. Se a natureza humana se construiu pela linguagem, porquê fazer apenas imagens?” 

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