Síria: Trump contra si mesmo

O perigo de uma escalada, numa guerra que se mundializou, é real.

Seis anos depois da erupção democrática na Síria, o que está em causa hoje já não é apenas o apoio às aspirações democráticas dos cidadãos sírios, mas sobretudo como protegê-los. É nessa perspetiva que deve ser analisada a decisão de Trump de lançar 59 mísseis de cruzeiro Tomahawks em resposta ao bombardeamento com armas químicas de Khan Sheikhun, uma zona controlada pela oposição.

A proibição do uso de armas químicas e biológicas é um daqueles raros progressos nas leis da guerra, datado de 1925, que têm que ser mantidos a todo o custo. No início do conflito sírio, o Presidente Obama tinha declarado que o uso de armas químicas pelo regime era uma linha vermelha que não poderia ser ultrapassada sem consequências. Em Agosto de 2013, o regime de Assad lançou um ataque com armas químicas contra áreas de Damasco controladas pela oposição, que causou 1500 vítimas mortais. Porém, Barack Obama não cumpriu a sua ameaça, aceitando a proposta russa de desmantelamento do arsenal químico sírio, um processo que, como agora vemos, foi incompleto.

Espantam-se alguns que Assad, depois das vitórias dos últimos meses, da destruição de Alepo, dos sucessos diplomático do seu protetor russo e da saída do isolamento internacional do seu aliado iraniano, tenha feito mais um ataque com armas químicas — o quarto, se tivermos em consideração apenas os identificados pela comissão independente das Nações Unidas para os crimes de guerra na Síria. Ao voltar a usar armas químicas, Assad deve ter considerado que, com a proteção de Putin, tudo continuaria a ser-lhe permitido.

Se Obama, o internacionalista, tinha deixado Assad impune pela utilização de armas de destruição maciça, não seria Trump, o isolacionista, que o iria atacar. Tanto mais que Trump tem procurado reaproximar os EUA dos ditadores do Médio Oriente na sua cruzada contra os islamistas, como ficou bem provado no seu recente encontro com o ditador egípcio, o general Sisi, que Obama recusara receber. Nesse encontro, Trump declarou que “queria que todo o mundo soubesse que ele apoiava o Presidente Sisi”, que fazia um “trabalho fantástico“. Esse “trabalho fantástico” traduz-se em 50 mil prisioneiros políticos, de irmãos muçulmanos a liberais laicos.

O erro de cálculo de Assad foi não perceber que Trump, com enormes dificuldades internas, seria tentado a levar a cabo uma ação militar que aumentasse a sua popularidade, tanto mais que a isso o incentivam os poderosos chefes militares que lideram a sua administração. As imagens de crianças gaseadas horrorizaram, mais uma vez, o mundo, legitimando a ação dos Estados Unidos. Como outros presidentes isolacionistas antes dele, Reagan e George W. Bush, Trump recorreu à ação militar para afirmar o seu poder interno e internacional, mas não definiu nenhuma estratégia para travar a tragédia humanitária na Síria. Hoje, qualquer intervenção é muito mais perigosa do que em 2013, quando a presença russa era muito limitada. O perigo de uma escalada, numa guerra que se mundializou, é real.

O Conselho de Segurança está paralisado desde o início da crise síria, com a Rússia a vetar sete resoluções que condenavam os crimes contra a humanidade cometidos por Assad contra o seu próprio povo, ao mesmo tempo que bombardeava indiscriminadamente as áreas controladas pela oposição não Daesh.

Creio que perante o bloqueio do Conselho de Segurança os seus membros têm a responsabilidade de prevenir crimes contra a humanidade como os que ocorrem na Síria — foi assim na Bósnia e deveria ter sido assim no Ruanda, por exemplo.

O problema é que o bombardeamento “simbólico” autorizado por Trump não põe termo à tragédia humanitária na Síria. Poderá dissuadir o uso de armas químicas, mas os bombardeamentos com armas convencionais irão provavelmente intensificar-se e os crimes contra a humanidade a ficarem impunes.

Enquanto os americanos e os seus aliados europeus se concentravam exclusivamente no combate ao Daesh, Assad, com o apoio da força aérea da Rússia, de milícias iranianas e do Hezbollah, foi destruindo a oposição democrática, poupando o Daesh, arrasando as cidades e transformando a Síria num imenso cemitério.

Os EUA não têm vontade e capacidade para resolverem sozinhos a questão síria. A liderança instável e irracional de Trump, em conjunto com o peso de militares como o secretário da defesa James Mattis, o “Mad Dog", fazem com que não sejam um aliado de confiança.

A solução para o conflito sírio é política, mas para isso é necessário convencer a Rússia e o Irão a obrigarem o regime de Damasco a negociar uma solução política com a oposição. É essa exigência que deveríamos todos estar a fazer e não, como fazem as correntes nacionalistas europeias, considerar que são os americanos, mesmo com Trump, o principal problema da Síria.

Deveríamos exigir que o Conselho de Segurança assuma as suas responsabilidades para travar todos os crimes contra a humanidade. Deveríamos exigir que os Estados da União Europeia assumam que a defesa da vida dos sírios é uma responsabilidade comum e que a Europa não pode continuar à espera dos americanos para resolver os problemas dos países vizinhos.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico 

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