Algumas luzes no túnel da ortografia

Todas as reflexões são importantes. Mas é preciso fazer algo já. Porque o ensino é o maior mártir de toda esta patranha.

Na passada quinta-feira, dia 9 de Março, coincidiram no tempo duas iniciativas relacionadas com o acordo ortográfico de 1990 (AO90): na Academia de Ciências de Lisboa (ACL) realizou-se um Encontro de Profissionais da Escrita e na Assembleia da República foi entregue presencialmente uma petição com mais de 20 mil assinaturas para a desvinculação de Portugal do AO90. Não são antagónicas, tais ocorrências. A primeira integra-se no caminho que a academia se propôs trilhar para a edição de um novo dicionário, para o qual pretende uma ortografia coerente; e a segunda é a resposta inequívoca à insensata posição do governo em recusar rever seja o que for nesta matéria.

Mas vêm, ambas, mostrar que não podemos continuar como até aqui. Sem surpresa, a maioria das posições expressas na ACL foram contra o AO90 ou bastante críticas das bases por ele impostas. Os seus defensores acríticos pouco ou fracamente argumentam, daí a sua quase ausência. Pelo contrário, aqueles que, defendendo-o, lhe apontam vários erros, não desistem do debate. Exemplo disto é o caso de D’Silvas Filho, professor aposentado, consultor do Ciberdúvidas, que tem vindo a adoptar uma posição crescentemente crítica sem abandonar a defesa do acordo. O seu mais recente texto, Acordos ortográficos imperfeitos não são sagrados, é bem demonstrativo dessa evolução. O Pórtico da Língua Portuguesa, onde tal texto se encontra também publicado, está a tornar-se mais uma montra útil desse pensamento crítico. Além dos vários artigos da responsável pelo Pórtico, a lexicógrafa Ana Salgado (encarregada pelo presidente da ACL, Artur Anselmo, de coordenar os trabalhos com vista à concretização do novo dicionário), incluiu recentemente outros que merecem dedicada atenção. Como a notável intervenção do investigador Fernando Venâncio na ACL, no dia 9, ou a transcrição do discurso do professor Celso Augusto Nunes da Conceição na sua tomada de posse como sócio correspondente brasileiro da ACL. E há ainda, fora do Pórtico mas na ACL, a posição cientificamente fundamentada do filólogo e investigador Fernando Paulo Baptista, que defende, entre várias outras medidas, a par da revogação imediata do AO90, a criação futura de um Thesaurus ortográfico global abarcando todas as variedades lexicais da CPLP e da Diáspora.

Tudo isto é importante. E, no entanto, é preciso fazer algo já. Porque o ensino é o maior mártir de toda esta patranha, que resiste ao diletantismo útil mas impotente. Como diz Fernando Venâncio no seu texto: “Pobres, sim, dos professores, pobres das criancinhas. O verdadeiro problema ainda são eles, os que não têm safa.” Não têm? Deviam ter. Entre as medidas obrigatórias neste campo deviam estar, para já, o levantamento das sanções (em notas ou outras) para quem escreva segundo a norma de 1945, por sinal a única que a lei portuguesa consagra. Isso ou a suspensão imediata do malfadado AO90. Enquanto não o corrigem, que deixe de ser “norma”, porque impor uma norma errada é o mesmo que medicar um doente com veneno para tentar curá-lo mais tarde.

É certo que, em defesa a todo o custo do AO90, Edviges Ferreira, presidente da Associação de Professores de Português (há outra, a Anproport, que é fundadamente contra), já veio advertir-nos: “Deitar para o lixo todo um trabalho realizado ao longo de cinco anos, porque um grupo de ‘velhos do restelo’ não aceita a mudança? Será que as consequências dessa nova mudança não serão negativas para os nossos alunos (os homens de amanhã)?” Pois bem: no seu texto, D’Silvas Filho tem uma passagem bem elucidativa a este respeito. Escreve ele, embora defendendo o acordo, que “considera inaceitável o argumento de que já há um uso em vigor, pois só 6 anos não estabelecem direito de uso, demais a mais algum abusivo.” Serve isto como argumento, senhora professora? Fernando Venâncio, por seu turno, não sendo contra a existência de um acordo, defende a remoção do actual para dar “tempo a que os anticorpos que ele gerou se diluam.” E depois? “O ‘Acordo’ do futuro poderá ser um acordar em não nos empatarmos mais uns aos outros. E esse, senhores e amigos, será, finalmente, um Acordo como deve ser.” Teremos direito a um futuro assim?

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