Mon Dieu, e a França, agora?

Macron reativou o centro, numa França pouco vista, parece inegável e – talvez –consequente.

:Ser-se liberal em França é uma anomalia. Que o diga François Guizot (1787-1874), o historiador e político francês que nunca se conseguiria livrar da reputação de reacionário, responsável pela revolução de 1848, a revolução social falhada que procurou acabar o trabalho da revolução de 1789. Levar a revolução de 1789 a um desfecho era também o objectivo de Guizot. Em particular, importava, em seu entender, restringir a instabilidade decorrente da ascensão do princípio da soberania popular e da ilusão de controlo absoluto sobre os destinos colectivos que o novo princípio alimentava. “Não acredito”, insistia Guizot, “nem no direito divino, nem na soberania popular, tal como são quase sempre entendidos. Vejo-os apenas como usurpações do poder.” A afirmação é contundente, mas intrigante.

O que poderia haver de comum, afinal, entre o princípio que prometia aos cidadãos o direito de autogoverno, e o princípio que os havia submetido ao governo das hierarquias do antigo regime? A resposta de Guizot é inequívoca: uma igual vulnerabilidade à usurpação, potencialmente geradora de instabilidade social e política. E a razão é simples, mas ainda hoje pouco compreendida: é que nem a vontade de Deus, nem a vontade do povo, são susceptíveis de conhecimento direto, por muitos que sejam os referendos ou auscultações de opinião. A sua articulação requer interpretação, e, por conseguinte, também, intérpretes.

Mas em toda a mediação reside um perigo: o perigo de ventriloquismo. Foram muitos os profetas que invocando inspiração divina se fizeram soberanos – e não soberanos constitucionais, mas absolutos, recusando prestar contas a Deus ou ao povo. São hoje também muitos aqueles que invocam a legitimação directa do povo –  Au nom du peuple é, de resto, o slogan de Marine Le Pen às presidenciais francesas – para “em nome do povo” desautorizarem parte dele, e quem quer que, na oposição, ouse construir a “vontade do povo” de maneira diferente. É que sob todo o intérprete cai uma tentação, que não é pequena: a de tomar o lugar do poder, através da pretensão ao monopólio exclusivo da representação do povo, que, tido por uno, só pode apresentar uma vontade cristalina, a sua. Vox populivox Dei. A voz do povo é a voz de Deus – ou daqueles pequenos deuses que se fazem seus enviados.

Entre eles está hoje Marine Le Pen. Le Pen apresentou a semana passada os 144 “compromissos presidenciais” com que tenciona “dar ao povo uma voz”. No conteúdo e na forma, as políticas elencadas por Le Pen exibem as marcas do populismo de direita que grassa um pouco por toda a Europa e que alimentam o rol de ilusões que tanto atormentavam Guizot. O recurso a mecanismos da democracia directa, designadamente ao referendo, para “auscultar” e fazer valer, alegadamente sem obstrução ou mediação, a “vontade do povo”. A promessa de total autonomia política pela reconquista da soberania nacional (monetária, legislativa, territorial e económica) usurpadas pela União Europeia. A tentativa de pôr fim ao desgoverno introduzido por uma série de forças deixadas à solta pela globalização “selvagem” pelo protecionismo “inteligente”. O “patriotismo” económico, a restauração de uma moeda nacional e a política de reindustrialização, como formas de restituir França à sua prosperidade perdida. A resposta à ânsia de ordem e controlo social por parte da população com uma maior liderança militar externa, o rearmamento “massivo” das forças de segurança interna, o reforço da dureza das penas de prisão, o combate vigoroso ao terrorismo, o controlo da imigração e o adensamento da grelha de poderes disciplinadores, começando pelo uniforme na escola, como imagem da laïcité. A concepção e reprodução da comunidade nacional enquanto comunidade homogénea, com a consequente discriminação e suspeita face a grupos étnico e culturalmente “externos” (veja-se, por exemplo, as suspeitas levantadas sobre a dupla nacionalidade e a eliminação do ius soli) e a preferência por privilégios e direitos exclusivos aos “Franceses”, designadamente os sociais, que Le Pen promete reforçar. Para dar “voz” e forma aos seus “Franceses”, Le Pen tenciona, assim, deixar muitos franceses (e potenciais franceses) de fora.

Le Pen não seria Le Pen se assim não fosse. Não é pois Le Pen quem traz novidade às eleições francesas. Esse papel cabe a Emmanuel Macron. Macron é o líder de um novo movimento centrista, En Marche!, no exato momento em que o centro, um pouco por todo o lado, se esvazia. Com apenas 39 anos, o “menino bonito” da política francesa tornou-se assim na aposta de muitos para uma inversão da onda populista. Seguindo a deixa populista, Macron – produto da prestigiada École ormale d’administration e ex-ministro da Economia de Holande – apresenta-se como um estranho ao sistema. Tal como muitos populistas, diz-se apoiado por um movimento que não é partido. Piscando o olho à democracia direta, promete a escolha dos candidatos à Assembleia Nacional por um processo aberto, conduzido online. Vindo da esquerda, desafia a velha clivagem esquerda-direita, que diz obsoleta. Um ex-banqueiro de investimento, Macron é liberal em matérias económicas e de esquerda em termos sociais. Se a segurança e a imigração, a soberania e identidade nacionais, são os temas de campanha de Le Pen, Macron multiplica-se em apelos à modernização económica, à inovação, à reforma da legislação laboral, à mobilidade social e a uma maior integração europeia sob liderança francesa.

A França de Macron é uma França a precisar de reformas urgentes, em que os privilégios dos insiders, com proteção no emprego e maior acesso aos benefícios sociais, não podem mais ser mantidos às expensas de uma casta crescente de outsiders, sobretudo os jovens desempregados e trabalhadores com contratos a prazo. Tímido no território político de Le Pen, Macron, que tem nesta a sua primeira eleição, enfrenta problemas consideráveis de credibilidade. Há nele um certo ar de “terceira via”, que apela a profissionais qualificados, mas não necessariamente aos deixadas para trás. Por esta e outras razões, Macron não é um candidato do agrado de todos. Mas os deuses da sorte têm-no assistido. A desastrosa escolha de candidato pelo Partido Socialista e o escândalo que vai engolindo o candidato conservador, François Fillon, abrem-lhe fileiras. Será Macron a surpresa das eleições francesas? No atual clima de insurgência populista, arriscar uma resposta seria, no mínimo, incauto. Mas que Macron reativou o centro, numa França pouco vista, parece inegável e – talvez –consequente.    

Professora de Ciência Política na Universidade de York

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