Finanças negociaram com advogados de Domingues lei para a CGD

Equipa de Mourinho Félix deu a escolher a escritório de advogados de António Domingues qual a formulação que pretendia para alteração à lei. Ficou quase tudo como o ex-presidente da CGD queria.

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António Domingues deixou a presidência da Caixa depois da polémica com os rendimentos Enric Vives-Rubio

O Ministério das Finanças negociou ponto a ponto com a sociedade de advogados Campos Ferreira, Sá Carneiro & Associados, que assessorava António Domingues ainda sem contrato assinado, a alteração à lei que isentava os administradores da CGD das obrigações impostas pelo Estatuto de Gestores Públicos (EGP). A intenção era também que a futura administração do banco público fosse dispensada da entrega das declarações ao Tribunal Constitucional (TC), confirmam vários emails entregues por Domingues ao Parlamento, consultados pelo PÚBLICO. Mesmo que o facto tenha chegado a ser oficialmente confirmado pelo secretário de Estado das Finanças, Ricardo Mourinho Félix, o Governo nega agora que tenha havido um compromisso entre as Finanças e António Domingues nesse sentido.

A história em torno das excepções criadas para a administração da CGD já leva vários meses e é feita de não-ditos, contradições e silêncios por parte do Governo. O jornal Eco revelou ontem alguns emails enviados por Domingues à equipa das Finanças em que este demonstrava surpresa pelo debate que se criou em torno daquilo que para si era um compromisso com o Executivo, dizendo que a excepção de entrega de declarações ao TC “foi uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD e do mandato para convidar os restantes membros dos órgãos sociais, como de resto o Ministério das Finanças confirmou”.

Ora as condições tinham sido colocadas lá atrás, entre Abril e Junho de 2016, durante uma intensa troca de comunicações entre António Domingues, o secretário de Estado Ricardo Mourinho Félix e membros da equipa e o escritório de advogados. Em nenhuma é referida o TC, mas havia a interpretação que retirando os administradores do EGP, não se aplicaria a lei de 1983, a que obriga à entrega das declarações.

Na documentação que foi entregue por Domingues à comissão de inquérito à gestão da Caixa, é possível ver que o gabinete de Mourinho Félix negociou as alterações à lei que permitiam que os administradores da CGD ficassem excepcionados do EGP, dando a escolher aos advogados a formulação pretendida. Num email em Junho, por exemplo, um técnico especialista do gabinete do governante enviou três opções para aquilo que seria o decreto-lei que permitiu a excepção (entretanto revogado pelo Parlamento) e recebeu como resposta do escritório de advogados: “Das três redacções que nos enviou a que julgamos corresponder ao pretendido é a primeira, sem a parte final assinalada a negrito. Isto porque o objectivo não é apenas desqualificar os membros da administração como gestores públicos, mas também afastar a aplicação de todo o decreto-lei”, lê-se.

As semelhanças entre a proposta dos advogados e a redacção final do decreto-lei começam logo no preâmbulo: o início é idêntico, o restante corpo do texto sofreu bastantes alterações nas frases, mas com o mesmo intuito. E a formulação na parte dos artigos é em tudo igual à escolhida pelos advogados de Domingues, sem a dita parte a negrito e mais outro acrescento.

Esta negociação é importante para perceber como se chegou à excepção e ao compromisso negado pelo Governo. O decreto-lei foi publicado no Verão e a interpretação que era dada pelos visados na altura era a de que além de aquela alteração legislativa permitia duas coisas: alterar a parte remuneratória (permitia salários semelhantes aos do privado); e os isentava de entregarem as declarações de rendimentos.

Foi aliás esta a interpretação que vigorou também nas Finanças mesmo depois de o comentador Marques Mendes, também conselheiro de Estado de Marcelo Rebelo de Sousa, ter levantado a questão, já em Outubro. A interpretação foi assumida oficialmente pelo Ministério das Finanças em respostas ao PÚBLICO onde era dito que a excepção era intencional até porque os dirigentes da CGD “estão disponíveis para revelar essa informação ao accionista”, ou seja ao Governo: “Não foi lapso. O escrutínio já é feito”, lia-se nas respostas. Era ainda explicado que a retirada do EGP servia para que a a CGD fosse tratada como qualquer outro banco".

A partir daqui, todas as declarações, quer de Mário Centeno quer de António Costa, foram no sentido de que não tinha havido um compromisso sobre esta situação e que o que tinha ficado acordado era apenas a alteração à lei. No jogo das palavras, um lado do Governo nega que haja um compromisso, outro lado que houve uma intenção. O PÚBLICO questionou o Ministério das Finanças sobre as várias contradições sobre este assunto nos últimos meses nunca tendo obtido outra resposta que não a inicial. Ontem, depois de novas perguntas sobre o que foi percebido por António Domingues, mas também insistindo porque havia a “intenção” quando o Governo diz que não há compromisso prévio, o gabinete de Mário Centeno apenas respondeu que não tem “nada a acrescentar ao que já foi dito publicamente sobre esta matéria”. O PÚBLICO também questionou a sociedade de advogados. A resposta foi seca: “nos termos da lei” a sociedade “não pode prestar qualquer informação relativa aos seus clientes nem respectivos assuntos”.

As condições

Nos emails em que fala das condições para aceitar o cargo na CGD, António Domingues faz chegar às Finanças um documento com aspectos do regime “de direito público aplicável aos gestores públicos e às empresas públicas” que “se entende que devem ser afastados”, revelou o Eco. É neste ponto que Domingues pede que “não devem existir obrigações de publicidade, transparência ou de declaração relativamente à identidade e aos elementos curriculares de todos os membros” da administração “além das que já decorrem da lei comercial, incluindo da lei e regularização bancária que impõem o cumprimento de rigorosas obrigações”. Contudo, este ponto está associado às exigências de transparência junto da Inspecção-Geral das Finanças, sem nunca ser referido o Tribunal Constitucional.

Nos corredores do Governo, o regresso da polémica fez voltar o passa-culpas de bastidores. A Sábado fazia saber ontem à tarde que o primeiro-ministro estava a par das excepções negociadas com Domingues que poderiam gerar polémica. Fonte do Executivo chegou a dizer ao PÚBLICO que se poderia tratar de um mal entendido desde o início, passando também por ser um equívoco do secretário de Estado, o único a assumir publicamente que a excepção era “intencional”. 

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