Israel acusado de "legalizar roubo" de terra palestiniana com lei de expropriação

Lei que permite expropriar terrenos de palestinianos para casas de colonos judaicos marca a primeira vez que Israel legisla sobre um direito de propriedade privada na Cisjordânia. "Fica a um passo da anexação", disse ao PÚBLICO responsável da ONG Peace Now.

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Evacuação do colonato não autorizado de Amona na semana passada JIM HOLLANDER/EPA

O que se seguirá à aprovação pelo Parlamento israelita de uma lei que autoriza retroactivamente a construção de casas de colonatos judaicos em propriedade palestiniana privada? Os seus defensores dizem que esta lei significa que Israel aceita a sua responsabilidade sobre os colonatos; os seus críticos que se trata de "roubo de terra" que irá deixar o Estado hebraico exposto a acusações no Tribunal Penal Internacional. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, reagiu dizendo que a lei "infringe a lei internacional e terá consequências jurídicas para Israel", segundo um comunicado citado pelo diário francês Le Monde

O que esta lei tem de problemático é que é a primeira vez que Israel legisla numa questão de propriedade para além da “linha verde”, demarcada em 1949 e que continua a ser a referência enquanto não há um acordo final entre israelitas e palestinianos. Legislar sobre a zona pode, segundo os críticos da lei, ser um passo da anexação do território (Israel nunca anexou território na Faixa de Gaza ou Cisjordânia com excepção de Jerusalém Oriental, numa acção não reconhecida pela comunidade internacional).

Israel tem vários graus de controlo militar na Cisjordânia, mas os palestinianos que ali vivem não têm direitos em Israel: por exemplo, o de voto. Isto mesmo dizia Dan Meridor, antigo ministro do Likud, o partido do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. “Os árabes da Judeia e Samaria [nome bíblico da Cisjordânia] não votaram para o Knesset [Parlamento israelita], por isso este não tem autoridade para legislar sobre eles", cita o jornal israelita Ha'aretz. “Este é um princípio básico da democracia e da lei israelita.” 

O enviado da ONU para o processo de paz, Nickolai Mladenov, disse que com esta decisão Israel “ultrapassou uma linha vermelha muito grossa” e estabeleceu “um precedente muito perigoso”. 

“Esta decisão legaliza o roubo de terras”, comentou ao PÚBLICO, por telefone, a responsável pelas relações exteriores da organização de monitorização dos colonatos israelitas Peace Now, Anat Ben Nun. “Dar luz verde a isto é ficar a um passo da anexação.”

O líder do Partido Trabalhista (oposição), Isaac Herzog, avisou que a lei pode prejudicar o interesse de Israel já que “anexa milhões de palestinianos”. Ao aprová-la, Israel está a iniciar uma acção de consequências potencialmente problemáticas: “Este comboio sai daqui e só pára em Haia”, onde o Tribunal Penal Internacional está já a fazer uma apreciação preliminar dos colonatos judaicos na Cisjordânia para decidir se inicia um processo.

Quem defende a lei admite que a ideia é expandir. “Daqui vamos aumentar a soberania israelita na Judeia e Samaria e desenvolver colonatos”, afirmou Bezalel Smotrich, um dos promotores da lei, do partido nacionalista Casa Judaica.

O que a lei, chamada “Lei da Regularização”, faz é autorizar construção em terrenos privados palestinianos desde que se prove que os colonos não tinham conhecimento de que a terra tinha donos. O decreto usa o termo legalizar – embora todos os colonatos sejam ilegais de acordo com a lei internacional; Israel divide os seus colonatos entre os autorizados, a que chama legais, e os não-autorizados ou selvagens, a que chama ilegais. 

A lei, aprovada por 60 votos a favor e 52 contra, autoriza retroactivamente cerca de 4000 casas e oferece compensação aos donos dos terrenos. 

O procurador-geral do país, Avichai Mandelblit, manifestou-se contra a proposta de lei e disse que se fosse aprovada não a defenderia em tribunal. Várias organizações, incluindo o Peace Now, anunciaram que a vão desafiar no Supremo.

A ministra da Justiça, Ayelet Shaked (outra promotora da lei, também do partido Casa Judaica), diz que, se for necessário, um advogado privado representará o Estado em tribunal. O ministro da Defesa, Avigdor Lieberman, disse publicamente antes da aprovação da lei que há uma probabilidade de 100% de a lei ser anulada pelo Supremo.

Efeito Trump

Dos Estados Unidos, o Departamento de Estado recusou-se a comentar, recordando apenas a sua declaração da semana passada dizendo que novos colonatos “não ajudam” o processo de paz. De resto, os EUA aguardarão o veredicto judicial.

O contexto internacional não é alheio a esta aprovação. Donald Trump tem-se apresentado como um Presidente fortemente pró-Israel e nomeou um apoiante dos colonatos para embaixador no país. “Netanyahu está a tentar aproveitar-se” da conjuntura, disse Anat Ben Nun – o anúncio de seis mil novas casas em duas semanas é também prova disso. “Mas a política de Trump quanto aos colonatos ainda não é muito clara – é cedo para os colonos estarem a celebrar”, concluiu a responsável do Peace Now.

A remoção de casas no colonato não autorizado de Amona, que decorreu nos últimos dias com longas emissões televisivas de colonos a serem levados por soldados e casas a serem desmanteladas, foi vista como o principal catalisador da lei. Ocasionalmente, o Supremo ordena a evacuação de colonatos não autorizados – ainda esta terça-feira ordenou a demolição de 17 casas num outro colonato, dando um prazo de até Junho de 2018 para a decisão ser concretizada.

Da União Europeia não houve reacção ao anúncio mas a imprensa israelita via o cancelamento de uma cimeira UE-Israel, que seria a primeira dos últimos cinco anos, como uma consequência dos anúncios de colonatos e da discussão desta lei. A União Europeia tem tido acções contra os colonatos, recusando-se por exemplo a dar verbas a instituições académicas israelitas com sede do outro lado da “linha verde”, a linha de 1949 que continua a ser a referência enquanto não há um acordo final para dois Estados.

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