Estamos "no limiar de algo novo na história do sistema financeiro português"

O historiador Miguel Figueira de Faria destaca a "deserção dos investidores portugueses" de posições de referência no sector.

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Adriano Miranda

Miguel Figueira de Faria, historiador e autor da obra “BCP – A Primeira Década”, lançada em 2002, diz que o banco resultou "de um compromisso entre o poder politico - governo do Bloco Central liderado por Mário Soares - e uma classe empresarial que emergia no ocaso forçado dos grandes grupos" 

Na sua fundação, o BCP tinha uma componente accionista repleta de empresas e investidores nacionais. Hoje, isso é quase inexistente. Foi uma evolução natural?
A criação do BCP faz parte de um contexto específico de que não pode ser desligado, a da geração de instituições derivadas da reabertura do sector à iniciativa privada. Foi uma oportunidade única para a formação de uma nova banca, partindo do nada, em confronto com uma banca nacionalizada, pesada na sua inércia e gerida nos compromissos partidários no rateio dos lugares de administração. O BCP nasceu nesse contexto resultando de um compromisso entre o poder politico - governo do Bloco Central liderado por Mário Soares - e uma classe empresarial que emergia no ocaso forçado dos grandes grupos, sobretudo centrada a norte e caracterizada pela actividade exportadora da qual Américo Amorim representa exemplo maior. A mobilização do norte do país foi determinante nessa fase e pode-se dizer que resultou num efeito sistémico partindo do entusiasmo de alguns como Paulo Valada e o chamado Grupo do Infante de Sagres (que se reunia nesse hotel do Porto) e a capacidade empreendedora de Américo Amorim, da Têxtil Manuel Gonçalves e da Vista Alegre, entre outros.

A saída de Américo Amorim do capital do banco foi um ponto de viragem, a favor da gestão encabeçada por Jardim Gonçalves?
A saída de Américo Amorim resultou de uma divergência sobre o modelo de governança do banco: accionista de referência ou tecnoestrutura? Qual o equilíbrio ideal na liderança do modelo de governança da instituição? Américo Amorim considerou a estratégia desenvolvida pela administração como uma "descolagem" do projecto inicial que, reconheça-se, muito lhe deve, e saiu. A partir daí o projecto foi claramente conduzido pela administração liderada pelo Eng.º Jardim Gonçalves e obteve uma primeira década de reconhecido sucesso.

O seu livro foi publicado no final de 2002. Como vê o banco hoje?
O BCP/Millennium actual tem já pouco a ver com o projecto da "Primeira Década". Numa primeira fase, a do crescimento por aquisição de outras instituições - a "digestão" do BPA parece ter sido muita complexa... - o projecto sofreu uma inevitável mutação que o afastou do seu primitivo berço accionista e modelo empresarial. Numa segunda - na crise da sucessão - são conhecidas as dificuldades sentidas e muito agravadas com a intervenção evidente do poder político que nos conduz à fase actual afastando a essência privada que presidiu à fundação em 1985. Em todo o caso note-se que na turbulência que caracterizou o período pós -crise do subprime o BCP, a par do BPI, representa, ainda que por pouco mais tempo, os últimos exercícios de sobrevivência da grande banca comercial privada nacional resultante das transformações derivadas da revolução de 1974 e da recomposição do sistema a partir de 1985, atendendo a que ainda não se sabe o que se irá passar com o Novo Banco. Ou seja, é motivo de reflexão estarmos no limiar de algo novo na história do sistema financeiro português: o da deserção dos investidores portugueses do sector, pelo menos em posições de referência.

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