É a segunda vez em 30 anos que Espanha tenta enterrar resíduos nucleares junto à fronteira

Comissão Europeia poderá obrigar Espanha a avaliar impacto transfronteiriço do aterro nuclear de Almaraz. Em 1986, queixa portuguesa em Bruxelas forçou Madrid a travar cemitério nuclear próximo da fronteira, no Douro.

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No Verão, centenas de portugueses e espanhóis reivindicaram em Cáceres o encerramento de Almaraz Rui Gaudêncio

Não é a primeira vez que as relações entre Portugal e Espanha azedam por causa da tentativa espanhola de enterrar os seus resíduos nucleares junto à fronteira. Há 30 anos, Portugal também se queixou em Bruxelas depois de Espanha ter aprovado a criação de um cemitério nuclear em Aldeadávila de La Ribera, no Douro Internacional, sem consultar Lisboa, à semelhança do que se passou agora com a luz verde dada por Madrid à criação de um depósito nuclear em Almaraz, a 100 quilómetros da fronteira, cuja construção é, ao que tudo indica, um primeiro passo para prolongar por mais vinte anos a vida daquela central nuclear em fim de vida.  

“O Governo espanhol da altura tentou disfarçar o projecto dizendo que se tratava de um laboratório de investigação, quando o que estava em causa era um depósito de resíduos de altíssima radioactividade, que ainda hoje estão nas caves das centrais nucleares”, recorda Carlos Pimenta, o na altura secretário de Estado do Ambiente de Cavaco Silva que protagonizou então o braço-de-ferro contra Espanha.

Além da queixa a Bruxelas, o governante mobilizou a opinião pública para os riscos de um plano que ameaçava criar problemas de contaminação radioactiva em todo o Douro. “Na altura, isso incomodou muito o Governo de Espanha, porque não tinha tido uma atitude transparente nem sequer com a sua própria população e autoridades autonómicas. Quando eu, com toda a transparência, partilhei a informação que nos chegou via Bruxelas, todos se mexeram e criaram uma frente de oposição ao projecto, mesmo dentro de Espanha”.

Pressão diplomática

Na altura, o projecto espanhol, segundo Carlos Pimenta, esbarrou na combinação da acção diplomática forte do Governo português com as pressões de Bruxelas e o movimento de oposição que se gerou na opinião pública dos dois lados da fronteira e que motivou dezenas de manifestações que chegaram a ameaçar as relações económicas entre os dois países. Agora, como então, Pimenta aconselha Portugal a “usar a arma da transparência, através do que conseguir via Bruxelas, para mobilizar a opinião pública contra o avanço daquele armazém de resíduos nucleares”.

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O especialista em energia nuclear diz-se, de resto, convicto de que a Comissão Europeia tem poder para obrigar Espanha a avaliar o impacto transfronteiriço do aterro nuclear, sendo que "qualquer análise séria concluirá que há riscos que não são aceitáveis, como este de construir um depósito nuclear em cima do Tejo”. “Tal como há trinta anos atrás, houve aqui uma tentativa óbvia de sonegar informação às autoridades portuguesas e, a partir daí, houve uma violação do direito europeu”, sustenta, para considerar inaceitável que Espanha insista em resolver o seu problema de resíduos nucleares junto à fronteira, “quando tem um interland tão grande”. 

Para sustentar a tese de que Portugal não deve contar com transparência do lado de lá da fronteira, Pimenta recorda ainda que, também em 1986, se viu forçado a equacionar a suspensão do fornecimento de água à Grande Lisboa porque tinha havido um acidente em Almaraz que Espanha procurara silenciar. “Houve contaminação radioactiva das águas do Tejo de que só nos apercebemos porque as nossas estações de medição em território português indicavam níveis crescentes de radioactividade. Espanha sonegou essa informação”.

Espanha lançou o estudo de impacto ambiental para a criação deste depósito numa altura em que Portugal estava às portas das eleições legislativas, em Outubro de 2015, e sem informar o Governo, cuja pasta do Ambiente estava então nas mãos de Jorge Moreira da Silva.

Portugal acordou tarde para o tema?

Mas o actual ministro do Ambiente, Matos Fernandes, também é acusado de ter acordado tarde para o assunto. A insistência no encontro com a sua congénere espanhola (que fora finalmente marcado para o dia 12 de Janeiro) surgiu muitos meses depois de ter sido instado pelas forças à esquerda no Parlamento a exigir a Madrid o encerramento definitivo da central, devido aos riscos de acidente. “O ministro andou distraído num assunto de enorme gravidade”, acusa António Eloy, do Movimento Antinuclear Ibérico, para quem o Governo, que ignorou os pedidos das associações ambientalistas para discutir o assunto, "foi até agora completamente displicente”.

No Verão, centenas de portugueses e espanhóis reivindicaram em Cáceres o encerramento de Almaraz. Com 35 anos e um largo historial de incidentes, a central devia ter fechado em 2010 mas viu renovada a sua licença de exploração até pouco depois de 2020. Detida pela Ibedrola (53%), Endesa (36%) e pela Gas Natural (11%), Almaraz é uma das 133 centrais nucleares europeias que já passaram o prazo de validade. O problema é que desmantelá-las custaria, segundo o eurodeputado Carlos Zorrinho, o equivalente a “dois planos Juncker”. “São muitos milhares de milhões, entre a desmontagem e descontaminação”, concorda Carlos Pimenta, para ironizar: “Enquanto se conseguir prolongar a vida do doente ligando-o à máquina, o problema do pagamento não se coloca”. 

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