Falar ou não falar com Trump, eis a questão do Partido Democrata

Ala mais progressista, liderada por Bernie Sanders e Elizabeth Warren, procura um equilíbrio difícil entre marcar pontos na sua agenda e normalizar uma Administração Trump.

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As prioridades de Donald Trump passam pela economia Mandel Ngan/AFP

Ainda a apanhar os cacos de uma das derrotas mais traumáticas das últimas décadas, o Partido Democrata norte-americano caiu em apenas duas semanas do topo de uma montanha, de onde vislumbrava a Casa Branca e o Senado, para o fundo de um poço, onde a ala mais progressista tenta agora alargar a sua influência através de um perigoso exercício de equilíbrio: como trabalhar com Donald Trump em alguns temas com pontos em comum sem correr o risco de normalizar o mandato de um Presidente que acusam de instigar o racismo e de pôr em causa valores como a tolerância e a diversidade?

Depois da comunicação ao país que o Presidente eleito fez na noite de segunda-feira num vídeo partilhado no YouTube, em que prometeu fomentar “a produção e a inovação na América”, esse exercício ficou ainda mais difícil para personalidades como o senador Bernie Sanders e a senadora Elizabeth Warren – ambos porta-vozes de uma mensagem mais próxima da classe média trabalhadora do país mesmo enquanto faziam tudo para tentar levar Hillary Clinton para a Casa Branca.

Há um mundo inteiro a separar Sanders e Warren de Trump nas questões da imigração, do respeito pelas minorias, da forma como se fala em público sobre quase tudo e mais alguma coisa – e a nomeação de Steve Bannon como principal estratego de Casa Branca, um homem a quem Warren acusou de ser um supremacista branco, abalou ainda mais os progressistas do Partido Democrata.

Mas o movimento que Bernie Sanders criou à sua volta durante as eleições primárias contra Hillary Clinton teve alguns pontos de contacto com a principal mensagem de Donald Trump: a classe média trabalhadora americana está a viver cada vez pior e é preciso dar-lhe mais atenção a ela do que aos mais ricos; as estradas e os aeroportos do país estão uma desgraça, e é preciso aprovar um plano para modernizar aquilo tudo.

Logo no primeiro dia a seguir à vitória de Donald Trump, Bernie Sanders abriu a porta ao diálogo, salientando que o candidato tinha conseguido “perceber a raiva de uma classe média em declínio, que está farta e cansada das políticas, da economia e dos media do establishment”.

“As pessoas estão cansadas de trabalharem mais horas por menos salário, de verem postos de trabalho com salários decentes a irem para a China e para outros países com mão-de-obra barata, de multimilionários que não pagam impostos federais e de não conseguirem pagar uma educação superior aos seus filhos – tudo isto enquanto os muito ricos ficam muito mais ricos”, escreveu o senador do Vermont num comunicado publicado no seu site.

Mas é no segundo e último parágrafo que Bernie Sanders abre as portas ao tal perigoso exercício de equilíbrio: “Se o sr. Trump estiver a falar a sério sobre a aprovação de políticas que melhorem as vidas das famílias trabalhadoras deste país, eu e outros progressistas estamos preparados para trabalhar com ele. Se ele quiser aprovar políticas racistas, sexistas, xenófobas e anti-ambientais, vamos opomo-nos de forma vigorosa.”

As declarações de figuras importantes como Bernie Sanders e Elizabeth Warren deixam perceber um dos caminhos que o Partido Democrata pode trilhar no esforço de se reconstruir para as eleições de 2020, mas também para as que vão acontecer já daqui a dois anos, para as duas câmaras do Congresso – é possível trabalhar com a Administração Trump sem contribuir para que muitos eleitores do próprio partido se esqueçam mais rapidamente da brutal campanha do último ano e meio?

Dividido como está em muitas frentes – da liderança à estratégia a seguir –, entre o Partido Democrata e os seus apoiantes não faltam vozes a quererem seguir por caminhos muito diferentes uns dos outros.

“Acho que os progressistas seriam inteligentes se conseguissem fazer avançar o mais que puderem a sua agenda com Trump no poder. Ele vai ter esta autoridade nos próximos quatro anos e as pessoas estão a sofrer. Não podem esperar mais por avanços nas questões económicas”, disse ao site do jornal The Hill um dos principais conselheiros de Bernie Sanders durante as primárias do Partido Democrata, Tad Devine. Salientando que está a falar a título pessoal, Devine considera que fechar as portas a Donald Trump vai fazer com que o Partido Democrata seja punido ainda mais pelos eleitores de estados como o Ohio, a Pensilvânia e o Wisconsin, que em 2008 e 2012 votaram em Barack Obama e há duas semanas ajudaram a eleger Trump.

Distinção e demagogia

Mas esta tese é duramente criticada pelo analista político Jamelle Bouie, na revista online Slate. “Parece razoável que Warren e Sanders façam uma distinção entre o Trump enquanto populista defensor dos trabalhadores e o Trump demagogo racista. Mas essa distinção não existe. Apoiar uma proposta de renovação das infra-estruturas com a marca Trump como se se tratasse de uma iniciativa discreta em que os dois lados podem chegar a acordo vai servir apenas para reforçar uma política nacionalista branca, mesmo para quem se opõe ao resto da agenda dele. Legitima e dá gás ao tribalismo branco como estratégia política. Prova que há ganhos tangíveis de se apoiar uma demagogia ao estilo de Trump.”

Para complicar o futuro próximo do Partido Democrata, é a ala mais progressista que mais tem falado desde o dia das eleições – a sua verdadeira influência ainda está por avaliar, mas são figuras como Sanders, Warren ou o até agora desconhecido Tim Ryan, o congressista do Ohio que está a disputar a liderança da minoria do Partido Democrata na Câmara dos Representantes com a influente Nancy Pelosi, que têm andado de um lado para o outro nas televisões e nas redes sociais a tentar empurrar o partido para o que dizem ser o regresso aos estados mais afectados pelo fecho das fábricas e pelo desemprego.

“Temos de voltar a apresentar este partido como o partido que vai ajudar as pessoas da classe trabalhadora, sejam brancos, negros, gays ou heterossexuais, que vai melhorar as suas oportunidades de ganharem mais, de terem mais segurança económica. Desviámo-nos dessa mensagem. E quando não queremos falar sobre a economia, perdemos eleições”, disse Tim Ryan no programa State of the Union, da CNN.

Mas o abalo no Partido Democrata ainda está a começar – o apontar de dedos aos possíveis culpados pela derrota ainda agora começou, e Sanders não conseguiu esconder o seu alvo, mesmo depois de meses a incentivá-lo. No final de uma apresentação do seu livro em Boston, uma das mulheres presentes na sala perguntou que conselho tinha Sanders para ela no seu sonho de se tornar na segunda mulher latina no Senado. A resposta podia ter sido mais directa, mas só não percebeu quem não quis: “Não é suficiente alguém dizer ‘Eu sou uma mulher, votem em mim’. Não, isso não é suficiente. Precisamos de uma mulher que tenha a coragem para enfrentar Wall Street, as seguradoras, as farmacêuticas, a indústria dos combustíveis fósseis.” 

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