Juízes recebem livros que ensinam a saber ouvir crianças

Desde 2015, as crianças passaram a ser sempre ouvidas em processos de guarda parental. Dois livros estão a ser distribuídos a profissionais da justiça para ajudar a atenuar os danos dessa experiência.

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Tribunais debatem-se com falta de espaços para ouvir as crianças fora do ambiente de um julgamento, diz dirigente da Ordem dos Advogados Pedro Cunha

Cerca de 5500 livros, que explicam as técnicas de inquirição e mostram os receios e as dúvidas de uma criança que vai ser ouvida num processo de guarda parental, estão a ser distribuídos em vários tribunais de família e menores. Os livros, de pequeno formato, terão também como destino escolas, comissões de protecção de crianças e jovens, a Procuradoria-Geral da República, dependências da Segurança Social e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, entre outras entidades envolvidas em decisões que afectam a vida das crianças. 

Os livros O dia que a Mariana não queria e João vai ao tribunal, com coordenação científica da psicóloga Rute Agulhas e da professora do ISCTE-IUL Joana Alexandre, foram lançados por iniciativa do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados (OA). A narrativa transpõe para um diálogo com ilustração os principais receios que as crianças sentem perante a necessidade de serem ouvidas por um juiz num processo de guarda parental em divórcios litigiosos.

Ao João é explicado que ao tribunal – "um edifício com muitas salas onde trabalham muitas pessoas que fazem coisas diferentes" – compete encontrar a solução e defender os interesses das crianças.

À Mariana é dito que as togas são as roupas que usam os advogados e que a beca é a roupa dos juízes e dos procuradores, mas que o mais provável é estes não as usarem quando vão ouvir as crianças (como está previsto na lei). Diz ainda o livro que os juízes são pessoas com "uma profissão muito importante", chamados a tomar "decisões difíceis, para que muitas vezes se faça justiça". Também é dito à Mariana que o importante é que ela seja verdadeira nas suas palavras. “Não existem respostas certas nem erradas".

Medo de prejudicar os pais

Mesmo assim, diz António Jaime Martins, que preside ao Conselho Regional de Lisboa da OA, estas são situações difíceis para muitas crianças, que têm “medo de fazer mal aos pais, medo de prejudicar” um dos progenitores.

“Os problemas que se colocam às crianças requerem um esforço formativo grande dos nossos advogados, dos nossos assistentes sociais, dos nossos psicólogos”, prossegue. “A audição da criança é um direito seu, mas é uma pressão adicional que ela não tinha anteriormente."

A alteração legislativa no ano passado, com a entrada em vigor da lei 141/2015 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, passou a prever que "a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito".

"Concordo com o princípio da audição da criança sempre que esteja em causa uma decisão judicial que a vai afectar. Mas a audição tem de ser rodeada das devidas cautelas, para que não se crie uma situação de agressão psicológica ou emocional", diz António Jaime Martins.

A audição foi introduzida "na perspectiva de um direito da criança a ser ouvida em processos que vão mudar a sua vida", acrescenta. E isso deve ser salvaguardado. O objectivo destes livros é “enquadrar as crianças na audição”, explicando-lhes o que fazem o advogado, o juiz, o procurador e, ao mesmo tempo, "conferir aos profissionais os elementos que lhes permitam ajudar nesta desdramatização”.

Apesar de já existir na lei o princípio da audição da criança, "não temos concretizados" os meios para que ela se realize como prevê a lei, diz ainda António Jaime Martins. E exemplifica: "Não existem salas para as crianças esperarem descontraidamente, ou salas onde as crianças possam ser ouvidas sem o ambiente formal de um julgamento. Temos de criar condições para que esta pressão adicional não atinja a criança."

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