Nos Caldeireiros, há um Porto nostálgico do passado que convive com a modernidade

O quarteirão da Rua de Trás e dos Caldeireiros, que até há pouco tempo ainda era associado a zona de prostituição, renova-se com a abertura de novos espaços, conservando o carisma de um bairro típico portuense que ainda vive de porta aberta.

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Álvaro Escalona da loja Pajaro Malandro Nelson Garrido
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José Abreu da loja de maquinas de costura Nelson Garrido
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Maria Fernanda da Casa Costa Nelson Garrido
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Patricia Sousa da Horta do Pombo Nelson Garrido
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Maria Aurora, Moradora da Rua de Trás Nelson Garrido
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Luisa e André da Yours Guesthouse Nelson Garrido
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Antonio Augusto, barbeiro Nelson Garrido
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Susana Santos da Arte Sana Nelson Garrido
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Manuel Fonseca do Snack Bar Cinderela Nelson Garrido
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Sr Fonseca da Vidraria Fonseca Nelson Garrido
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Ambiente no Largo dos Loios Nelson Garrido

Sempre que se fala no Porto há lugares comuns que são inevitavelmente referidos. É-lhe conferido um carácter único de cidade onde as suas gentes são consideradas hospitaleiras, capazes de percorrerem quilómetros para garantir que um forasteiro perdido chegue ao seu destino. Gaba-se a gastronomia das tascas e o coração na boca dos seus habitantes que, seguramente e sem hesitar, dizem o que pensam e fazem questão de mostrar quando gostam ou não gostam de algo ou de alguém. Mito ou realidade, esta é uma das imagens de marca associada à Invicta, muitas vezes numa comparação directa, sobretudo, com a capital. Em oposição a esta ideia há um Porto onde este padrão se perde na multidão de turistas que nos últimos cinco anos percorrem a baixa e o centro histórico da cidade, que se foi equipando, de uma forma natural, em resposta à procura, com novos espaços dedicados ao gin, à tosta, às tapas, que agora são petiscos, ou ao hambúrguer artesanal.

Circunscrito entre a Cordoaria, os Clérigos, os Lóios e a renovada Rua das Flores, locais de passagem massiva de turistas, está o quarteirão da Rua de Trás e dos Caldeireiros, zona da cidade onde outrora se situavam os ferreiros, latoeiros e anzoleiros. Até há cerca de 20 anos, este quarteirão localizado já nas entranhas do centro histórico, era zona conhecida como local de prostituição e de tráfico de droga. À margem dessa imagem negativa que carregou durante décadas conviviam nas duas ruas lojas centenárias com tascas frequentadas pelos moradores do bairro e de toda a cidade. Quem lá mora recorda os tempos em que se deixava a porta aberta e se fazia da rua esplanada, onde os vizinhos se encontravam. Hoje conserva o lado pitoresco de um bairro típico portuense, enquanto aprende a relacionar-se com a modernidade.

Na parte mais alta do quarteirão, ainda no Campo dos Mártires da Pátria, antigo Largo do Olival, frente a duas esplanadas, ao início da tarde, bebe-se cerveja em tronco nu. De longe, entre conversas, espreita-se os turistas que passam de mochila em direcção aos Clérigos de mapa dobrado na mão. No meio de dois cafés, no mesmo largo, o barbeiro, António Augusto, espreita pela porta na pausa entre clientes. Há 34 anos que corta cabelo no mesmo espaço. Espaço que garante ter mais de 100 anos. Não consegue provar o centenário do barbeiro, mas comprova a sua antiguidade. Do relógio da parede tira a factura da compra do mesmo. Marca 3 de Outubro de 1940. Custou 240 escudos, comprado na antiga A Reguladora. “Um dinheirão na altura”, refere. Já lá estava desde o antigo patrão.

António faz todo o tipo de cortes, mais clássicos e mais modernos: “Tive que me adaptar. Os miúdos agora querem ter todos o cabelo como o do Cristiano Ronaldo”, brinca. Na barbearia corta-se o cabelo a homens, mas entra toda a gente, homens e mulheres. Conversa-se sobre tudo e sobre nada e fala-se também sobre o passado, o presente e o futuro daquele bairro: “Isto hoje está muito diferente”, diz. Não sabe bem se para melhor ou para pior, mas diz sentir alguma nostalgia de outros tempos quando havia mais gente a habitar naquela zona. Recorda que quando começou a trabalhar naquele estabelecimento, havia 8 barbearias no quarteirão. Hoje existem duas. “Houve muito comércio que fechou”, diz. No entanto, refere que, por outro lado, houve outros espaços novos que abriram, “noutros ramos”. “Nada contra, há espaço para todos”, afirma e sublinha que esta pode ser uma forma de chamar mais gente para aquela zona.

Um desses espaços mais recentes é o ArteSana, uma saboaria e loja de cosmética artesanal, que divide o estabelecimento com a designer Ana Guimarães, autora de peças de joalharia com expressões típicas do Porto. A ArteSana abriu nos Caldeireiros há três anos pela mão de Susana Santos. Escolheu os Caldeireiros incentivada pelo seu marido, que toda a vida lá viveu, e também por acreditar que a rua tem um “elevado potencial de crescimento”, refere. Outro factor que pesou na escolha foi o facto de as rendas ainda serem “convidativas”, por esta ser uma zona do centro histórico “que está a crescer, mas que muita gente ainda não descobriu”.

O valor das rendas foi também um dos motivos pelo qual Álvaro Escalona e o seu sócio Juanjo Martin, optaram pelos Caldeireiros para abrir a loja de t-shirts serigrafadas, Pajaro Malandro, há cerca de um ano e meio. Os valores abaixo dos 400 euros são, de acordo com Álvaro, impossíveis de encontrar noutros pontos do centro da cidade. O espanhol que trocou Málaga pelo Porto diz também gostar do ambiente familiar que aquele quarteirão proporciona. “Há um ambiente de bairro muito peculiar que conserva algumas raízes”, adianta. Essa mistura entre a modernidade e um lado “mais rústico e pitoresco” acredita ser o lado mais apelativo para quem visita a rua. Outra vantagem é na hora de escolha de um local para almoçar. Não tem dúvidas: “Prefiro as tascas”.

Convivência saudável

Na parte superior da rua de Trás cheira a peixe frito. Pela janela do número 224 consegue-se ver Maria Fernanda a preparar o prato do dia, pescada frita com arroz de ervilhas. A Casa Costa, com mais de 100 anos, continua aberta e conserva clientes antigos que lá vão todos os dias almoçar como é o caso de Mário Ramos. Com 84 anos, há 30 que por volta do meio-dia se desloca ao Costa, como é conhecido o espaço. “Já é da casa”, diz Maria Fernanda. O espaço, gerido pela família é procurado por locais e por quem vem de outros pontos da cidade. Nos últimos anos, diz ser também um espaço procurado por turistas e por clientes mais jovens que procuram um espaço mais típico.

Há cerca de três meses, Manuel Nunes e Argilio Varandas abriram o Clérigos Bar, nos Caldeireiros. especializado em petiscos e vinhos. De acordo com os proprietários, que trocaram a indústria farmacêutica pela restauração, a ideia é conservar o lado mais típico das tascas daquela área, dando-lhe um toque de modernidade, complementando com outro tipo de oferta, nomeadamente música ao vivo. Além da programação mais orientada para a música portuguesa, onde o fado também terá um lugar de destaque, é possível para qualquer visitante pegar numa das guitarras expostas e tocar. Manuel Nunes diz que a convivência com os espaços mais antigos é saudável e que já se sente também da rua, onde é normal passar um morador e parar para “dois dedos de conversa”, como aconteceu com Jorge Cardoso. Nascido e criado nos Caldeireiros há 63 anos, afirma conhecer a rua melhor do que ninguém. Diz-se contente por ver chegar novos comerciantes à rua, mas prefere ser cauteloso e esperar “para ver no que vai dar”. “Ainda há muita gente que tem medo de cá vir por achar que isto é perigoso”, diz. Jorge Cardoso entende que a rua ainda é associada à prostituição, por força de há uns anos “porta sim porta não” existirem bares onde isso acontecia. Mas mesmo “nessa altura” diz que a rua não era perigosa: “Volta e meia havia zaragata, mas mais chapada menos chapada e ficava tudo resolvido”.

Rita Fonseca, proprietária do Snack Bar Cinderela, também nascida nos Caldeireiros, mas agora a viver noutra zona da cidade, também recorda esses tempos e reforça a ideia de que a insegurança é um mito. Desde que se lembra, “como em todos os bairros há um problema ou outro, mas nada de especial”. O café, que existe há cerca de 40 anos, conhecido pela gaiola que tem à porta, é uma forma de poder voltar todos os dias ao bairro que a viu nascer e que por sua vontade nunca tinha deixado. Rita Fonseca diz que toda aquela zona mudou muito, mas que ainda conserva a sua identidade, apesar de muita gente ter saído para outros pontos da cidade. De há uns anos para cá, diz assistir a uma mudança, principalmente desde que começaram a abrir os primeiros hostels.

Aberto desde 2014, o Yours Guesthouse é um dos cerca de uma dezena de hostels situados naquele quarteirão. O proprietário do espaço, André Amorim, define o momento de viragem de toda aquela área precisamente quando, há cerca de 5 anos, começaram a abrir os primeiros. Foi a partir daí, quando começou a ser zona de dormida de turistas que outro tipo de comércio se virou para aquele quarteirão. Afirma que é notório que há um crescimento e uma maior abertura para a modernidade, mas sublinha que o maior trunfo do quarteirão é o espírito de bairro que ainda se conserva através de quem lá mora e da permanência de espaços comerciais que ainda perduram no tempo.

No quarteirão da rua de Trás e dos Caldeireiros ainda há quem tenha a porta aberta para quem passa. Ainda há merceeiro, o talho do sítio, o barbeiro, a loja que conserta máquinas de costura da Singer ou da Oliva, a vidraria Fonseca, com mais de 100 anos, e ainda há gente que lá nasceu a morar  no mesmo sítio. A par de espaços de restauração mais antigos, como é o caso da Casa Costa ou da Adega Vila Mea foram aparecendo novas propostas como o caso da Sandeira, da Horta do Pombo, do Miss'opo ou do Folias de Baco. Durante o dia, a rua é frequentada pelos moradores e por turistas que se deslocam para os locais de alojamento ou que passam por curiosidade. À noite a rua transfigura-se e ganha outra dimensão. Os restaurantes e os bares estão completos, mas a rua não entope. Manuel Nunes, do Clérigos Bar, diz que essa é uma das características diferenciadoras de uma rua que “ainda está por descobrir e que quer manter o seu lado mais pacato”.  

Aos domingos é dia de Loja Livre

Aos domingos, o 213 dos Caldeireiros, sede da associação Terra Viva, transforma-se na Loja Livre. Qualquer pessoa que precise de uma peça de roupa, da mesma forma como faz quando vai às compras, pode lá passar para escolher a custo zero o que quiser levar. Se ao contrário, em casa, tem roupa que não precise e que esteja em bom estado para mais alguém poder usar, pode deixar na loja. 

Os responsáveis pelo projecto, que preferem falar como um todo e não pessoalizar por funcionarem sem uma hierarquia, explicam que este não é um projecto de caridade nem um espaço de troca. Qualquer pessoa, independentemente do extracto social e mesmo que não tenha nada para deixar em troca, pode ser um utilizador da loja. A finalidade é evitar o desperdício e voltar a pôr em circulação peças de roupa que estão em condições de ser usadas por outras pessoas. Durante os cerca de três anos de existência, os criadores do projecto constatam, através da quantidade de roupa que lhes é entregue, que há efectivamente um excesso de vestuário que pode ser recuperado. A maior barreira tem sido fazer com que o público se sinta à vontade para levar as peças sem que se sintam culpados por não trazerem nada em troca, mas já há quem entenda o seu conceito e frequente assiduamente o espaço. A Loja Livre está aberta todos os domingos das 15h00 às 19h00.

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