A nossa casa ainda é a Europa

Sem tabus nem falsas ilusões, precisamos de debater a sério o nosso lugar num mundo que mudou profundamente desde que regressámos à Europa.

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1. É difícil que passe um dia sem que haja uma má notícia sobre a Europa ou, por outras palavras, mais uma prova de que as coisas podem vir a correr muito mal, caso os seus líderes não compreendam rapidamente que é absolutamente necessário travar esta descida ao abismo antes que seja tarde demais. A última foi o referendo holandês sobre o acordo de associação da União Europeia com a Ucrânia, que por sinal já está provisoriamente em funções. Não era vinculativo. Votou pouca gente. Ganhou folgadamente o não. E, como era óbvio, o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, não se pode dar ao luxo de encolher os ombros, sob pena de ser acusado de ignorar o significado político desta rejeição.

Jean-Claude Juncker disse que estava triste e acrescentou que se tratava de uma catástrofe. Este referendo, independentemente do seu resultado, significa uma machadada na política de vizinhança europeia, cada vez mais essencial para contrariar a desestabilização crescente nas suas fronteiras a leste e a sul, incentivando a democracia e o desenvolvimento. Trata-se de uma dimensão fundamental da segurança europeia e, se a moda pega, Juncker passa mesmo a ter razão. O que se passa na Holanda, passa-se noutros países europeus. A questão dos imigrantes foi ocupando cada vez mais espaço na sua agenda politica, alimentando a ascensão de um partido populista e xenófobo, que rejeita a presença de grandes comunidades islâmicas concentradas nas suas grandes cidades ou, mais recentemente, os polacos que vêm trabalhar para as estufas. A questão-chave, lá como em muitos outros países da União, é o descrédito da Europa aos olhos das opiniões públicas, que se manifesta com este ou com outros pretextos. Esta pequena introdução apenas serve para colocar a questão da nossa política europeia (que é interna) e da nossa política externa, que serão duramente postas à prova nos próximos tempos. Com um risco maior: a tentação de virar as costas à Europa, voltando à velha ilusão de que o mar alto está sempre à nossa disposição.

2. O chefe da Diplomacia portuguesa e o primeiro-ministro definiram as três prioridades estratégicas da nossa inserção internacional a partir dos mesmos princípios que resultaram da democratização e da europeização do país: primeiro a Europa, depois a Aliança Atlântica e, por fim, a comunidade de países que falam a língua portuguesa e com os quais partilhamos uma parte da nossa História. A ordem dos factores não é arbitrária. O PSD não se afasta muito desta trilogia, mesmo que tenha reduzido a política externa à diplomacia económica e a política europeia ao cumprimento das exigências da Alemanha. Independentemente das questões económicas e sem lhes retirar importância, os dois partidos comungam uma ideia fundamental: não há alternativa à nossa opção europeia. Fora dela não temos a mínima chance num mundo em profunda turbulência onde a ordem liberal está em perda e a relação de forças volta a imperar. Ambos têm consciência de que, se as coisas correrem mal na Europa, todos perderão mas serão os países mais pequenos e periféricos a pagar o preço mais alto. O ministro dos Negócios Estrangeiros resumiu esta ideia com uma expressão feliz: “O interesse de Portugal é a própria construção europeia”. Mas as palavras não chegam, sobretudo em tempos de profunda crise, como aqueles que vivemos.

A grande mudança europeia pode resumir-se, talvez, numa ideia: a Europa viveu até à queda do Muro e nos primeiros anos da reunificação no verdadeiro “fim da Histórica”, acreditando que a geopolítica estava morta e enterrada. A História voltou, a geografia também. A resposta a este regresso é um desafio gigantesco. Repetir o discurso do passado não é mais possível, abrindo as portas a alternativas que verdadeiramente não o são.

Que Europa preferimos? Uma Europa aberta ao mundo e virada para o Atlântico, onde o Reino Unido é indispensável para equilibrar a centralidade da potência continental e a própria relação entre a Alemanha e a França. As alianças obrigam-nos a olhar com frieza para os nossos parceiros. Basta lembrar alguns factos. O antigo primeiro-ministro espanhol José Luis Zapatero provou, logo no início da crise da dívida, a sua “solidariedade” socialista e ibérica, cancelando as cimeiras previstas com um país alvo de resgate. “A Espanha não é Portugal”. Mas Portugal fez exactamente o mesmo à Grécia nas negociações do terceiro resgate. “Portugal não é a Grécia”. A Irlanda também já disse que não era Portugal ou a Grécia. Temos também de equacionar a nossa relação com a Alemanha, o país cada vez mais hegemónico, num quadro em que a nossa valorização europeia passa pelo Atlântico e o que interessa aos alemães é o espaço dos seus vizinhos de Centro e de Leste e, no médio prazo, a Rússia. Também esta frente se exige flexibilidade e lucidez.

3. A segunda questão fundamental diz respeito ao nosso lugar na comunidade transatlântica, a nível bilateral (acordo de defesa) e na NATO. Uma avaliação realista das relações com os EUA mostra que já tiveram melhores dias, por razões que resultam das mudanças na estratégia de segurança dos EUA depois da Guerra Fria, mas também de más decisões nacionais. Falamos muito do passado e muito pouco do futuro. Temos de reflectir sobre qual é a melhor forma de voltarmos a ser vistos como um aliado fiável. Porque não vale a pena ter ilusões: seja qual for o Presidente, Bush ou Obama, a diplomacia americana é absolutamente pragmática. Reduzir tudo às Lajes é a pior das respostas. Até porque Washington já se virou para a Espanha (uma novidade histórica) com a escolha da Base de Rota, e os espanhóis, com todo o seu antiamericanismo, colocaram na mesa aquilo que os EUA precisavam. Estivemos no Afeganistão, é verdade, com tropas capazes de combater sem caveats, coisa que os americanos muito apreciam. Mas, se compararmos a nossa contribuição com a de outros países europeus como a Dinamarca, a Holanda ou a própria Bélgica, fazemos má figura. Não estamos na aliança militar contra o Daesh. A desculpa da crise só vale para os últimos anos. A Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento (TTIP) abriu-nos uma segunda oportunidade para não falharmos de novo a globalização e para a valorização da nossa geografia, a meio de um Atlântico que tenta manter a unidade entre as suas margens. O Governo é favorável ao TTIP. O problema é que se multiplicam os sinais de que a janela para os acordos de livre comércio começa a fechar-se, incluindo nos Estados Unidos.

4. Falta a terceira dimensão. Ninguém põe em causa os laços históricos que nos ligam aos nossos parceiros da CPLP, nem sequer que a língua é uma “pátria” comum. A questão é saber qual é o nosso papel nessa comunidade que reúne um colosso como o Brasil e um candidato a potência africana, como Angola, que sofre hoje brutalmente a sua total dependência do petróleo. A Guiné Equatorial não significa apenas a entrada de um torcionário. Fragiliza o argumento da língua e ignora a dimensão dos Direitos Humanos. Depois, a ideia de uma expansão da Aliança Atlântica para o Sul, com muitos adeptos por cá, não colhe grande entusiasmo. O Brasil não quer partilhar o seu estatuto de potência dominante no Atlântico Sul e não gosta da NATO, que vê como uma aliança do passado, quando o Norte dominava o mundo. Mas faz todos os anos, fora dos holofotes, um grande exercício conjunto com a Marinha americana.

Sem tabus nem falsas ilusões, precisamos de debater a sério o nosso lugar num mundo que mudou profundamente desde que regressámos à Europa. Sem perdemos de vista que a Europa é a nossa casa, mesmo que mude a mobília e reparta de maneira diferente as assoalhadas.

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