Silêncio até ao fim

O último ano de vida Harper Lee contrastou com mais de cinquenta de silêncio. A autora de uma grande obra única arriscava ser um fiasco e o mito podia acabar. Mas tudo aconteceu tão depressa quando começou.

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REUTERS/Lucas Jackson/Files

Há um ano, quando saiu a notícia de que Harper Lee não era autora de um livro único, a escritora, então com 88 anos, não quebrou o seu silêncio de décadas. Um silêncio sustentado na afirmação de que tudo o que tinha para dizer estava em Mataram a Cotovia. Foi o início de uma polémica baseada em especulações. Em Agosto de 2014, Tonja B. Carter, advogada de Harper Lee, procurava uns documentos e encontrou, por acaso, o manuscrito de um romance. Tinha como personagens, Atticus Finch, a filha de Atticus, Scout, irmã de Jem e amiga de Dill.

Tonja B. Carter contou, então, que pensou tratar-se de uma primeira versão do romance que imortalizou a escritora, vencedor do Pulitzer em 1961, até perceber que estava perante um livro diferente, um original nunca publicado. As personagens eram as mesmas, mas o tempo de acção era outro. Já não se estava na Grande Depressão, mas vinte anos depois, na tensão social dos anos cinquenta. O anúncio da descoberta deste inédito surgia colado à notícia de que o livro iria ser publicado. Harper Lee dera autorização.

Foi aí que a polémica estalou. As últimas informações sobre Harper Lee eram de que estava cega, física e mentalmente debilitada depois de ter sofrido um AVC, e a viver num lar na terra onde nasceu, Monroeville, no Alabama, para onde voltou após deixar Nova Iorque, fugindo aos holofotes. Tinha publicado um livro que se tornou um dos símbolos da América do século XX e, tanto quando possível, queria regressar ao anonimato. Lee retirou-se. A última entrevista que deu foi em 1964. E, dizia, o assunto esgotara-se.

Como iria a lenda que desde então se instalou sobreviver ao facto de haver outro livro? Estaria a ser publicado à revelia da autora? Se nunca o publicou enquanto estava lúcida e enquanto foi viva a sua irmã, a advogada Alice Lee, que sempre zelou pela privacidade da escritora, porquê agora? Estaria Harper Lee a ser manipulada? E se o livro não estivesse à altura de Mataram a Cotovia fazendo ressurgir suspeitas antigas como as de que fora o seu grande amigo, o escritor Truman Capote, a escrever o romance-sensação de Lee? O que se soube das reacções da escritora acerca de tudo isto foi através de intermediários. Tonja B. Carter terá perguntado a Harper Lee se aquele livro estava completo. A resposta foi: “Completo? Acho que sim. É o pai da Cotovia.” A justificação é a de que Lee escreveu primeiro aquele livro e quando o deu a ler ao editor, este sugeriu que ela recuasse à infância de Scout. “Eu era muito nova e o editor pediu-me para escrever um livro na perspectiva de Scout enquanto criança”. Foi assim que nasceu Mataram a Cotovia, e aquele, Vai e Põe uma Sentinela, foi arrumado.

Até há um ano. Quando se anunciou que havia um original de Lee, ele saltou de imediato para número um de vendas da Amazon norte-americana e britânica, seis meses antes de ser publicado. A curiosidade dos leitores acerca de Lee estava viva, mas Tonja B. Carter teve de responder em tribunal, acusada de tentativa de manipulação. Não se provou e o livro saiu em Julho nos Estados Unidos. Mais uma vez por interposta pessoa, Lee viera dizer que não estava disponível para qualquer acção de promoção ou entrevista. Fosse o romance bem ou mal recebido, o silêncio da escritora manter-se-ia. Houve mais uma frase alegadamente sua citada nessa altura sobre Vai e Põe uma Sentinela: considerava-o um “esforço muito decente” de uma principiante.

O livro saiu. As críticas sucederam-se. Não suficientemente bom para ofuscar Mataram a Cotovia, nem demasiado mau para levantar suspeitas sobre a qualidade da sua autora. Parecia, de facto, um ensaio, um exercício para algo maior. A polémica serenou, Vai e Põe uma Sentinela certamente terá uma vida muito mais curta do que Mataram a Cotovia, um romance cuja popularidade se confundirá sempre com o mito da autora.

 

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