Politics e policy

O que perturba o PSD é a sua incapacidade de compreender o verdadeiro alcance da inovadora metodologia agora utilizada pelo Partido Socialista.

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Nuno Ferreira Santos

Num dos seus últimos artigos no El País o escritor Javier Cercas elabora, a partir do relato de uma conversa tida em Washington, uma reflexão bastante interessante sobre a conhecida distinção que os anglo-saxónicos estabelecem entre os conceitos de politics e de policy. Para Cercas esta distinção tem um efeito iluminador na compreensão da realidade política espanhola - nesta prevaleceria uma indiferenciação entre politics e policy, se não mesmo uma subordinação da segunda à primeira. Para os anglo-saxónicos a diferença é clara: a politics será a arte de alcançar o poder e garantir a permanência no exercício do mesmo; a policy será a arte de usar o poder, isto é, de o colocar ao serviço de um projecto. Esta reflexão não deixa de ser de grande oportunidade e com uma aplicação que excede largamente o universo político espanhol. Olhemos para o nosso próprio país e reflictamos um pouco sobre o que tem sucedido ao longo da história da nossa democracia.

Como é evidente, carece de fundamentação a tese da dissociação absoluta entre os dois conceitos e é até perigoso estabelecer uma oposição entre eles baseada numa diferente valoração de ordem moral. A identificação do conceito de politics com um conjunto de estratagemas eticamente pouco exigentes, usados com o intuito de garantir a tomada e a manutenção do poder, enferma de notórias insuficiências e remete, no limite, para uma desqualificação da disputa política e concomitantemente do pluralismo característico das democracias liberais. Nas suas piores formulações esta visão pode conduzir mesmo à ablação da autonomia do fenómeno político, condenando-o a um estatuto de inferioridade face ao discurso moral, por um lado, e ao discurso tecnocrático, por outro. Sabemos quão perigoso isso pode ser. Constitui igualmente uma ilusão a identificação da policy com um modelo de governação imune às clivagens sociais e políticas e estritamente orientado por uma racionalidade técnica de natureza monista. É claro que estas salvaguardas seriam escusadas no contexto original do debate anglo-saxónico, dada a tradição histórica aí prevalecente, mas não podem deixar de ser enunciadas num país como o nosso, onde, por vicissitudes diversas, a especificidade dos mecanismos de representação e decisão políticas é muitas vezes objecto de profunda incompreensão.

No nosso caso, atentando à experiência dos últimos quarenta anos, o problema não reside na confusão entre os dois planos mas sim numa abordagem errada de qualquer um deles. Os partidos políticos, a quem incumbe a missão de assegurar a representação popular com base num contrato eleitoral referenciado a uma opção doutrinária e a um programa político concreto, foram revelando ao longo do tempo preocupantes insuficiências metodológicas e substantivas. Assistiu-se a uma progressiva desvalorização da discussão doutrinária, em grande parte substituída por uma mera contraposição de fórmulas comunicacionais, e observou-se uma deterioração dos processos de redacção de um compromisso político, reduzidos de algum modo a simples imposições demasiado atentas à linguagem do marketing e da propaganda. A esta perda correspondeu naturalmente o surgimento de uma linha discursiva assente no exclusivo enaltecimento da razão técnica, investida de uma neutralidade apolítica e usada com despudor por candidatos a estadistas desprovidos de qualquer tipo de cultura cívica. O resultado só poderia ser muito negativo, como em diversas circunstâncias efectivamente foi.

A importância do documento apresentado na semana passada pelo Partido Socialista, para além do seu valor facial, reside precisamente na ruptura que estabelece em relação ao modus operandi tradicional. Pela primeira vez − pelo menos de forma assim tão sistemática − um partido com vocação governativa solicitou a um grupo de personalidades de inegável envergadura nas respectivas áreas de conhecimento a apresentação de um texto orientador de um futuro programa eleitoral, pronto a ser submetido à devida discussão interna. Não estamos perante uma subordinação acrítica de uma estrutura partidária a uma estrutura informal estribada numa legitimidade extrapolítica, como também não estamos perante uma obediência a uma lógica de mero jogo político no que isso contém muitas vezes de desvalorização do conhecimento e da experiência. O carácter inovador desta forma de actuação suscitou, como não poderia deixar de ser, as mais desencontradas e nalguns casos desnorteadas reacções. Entre estas haverá a salientar a que tem vindo a ser protagonizada pelo PSD, o qual tem flutuado entre a demolição sumária, fundada num autoconfessado desconhecimento do teor das propostas, e a exigência peregrina da submissão das mesmas e do seu respectivo enquadramento macroeconómico a uma avaliação prévia por parte de entidades públicas a quem estão cometidas outro tipo de tarefas.

O que perturba o PSD é a sua incapacidade de compreender o verdadeiro alcance da inovadora metodologia agora utilizada pelo Partido Socialista. Tal não é de estranhar, já que a história das últimas décadas daquele partido é caracterizada pela dupla e contraditória adesão a soluções de liderança ora pretensiosamente tecnocráticas, ora ostensivamente alheias a qualquer preocupação de estudo rigoroso e fundamentação séria dos programas apresentados ao país. Só assim se percebe esta estapafúrdia insistência em querer auditar em lugar de querer debater. No fundo é ainda um substrato mental antipolítico que influência o comportamento da coligação governamental.

Por outro lado, também não deixa de ser curiosa a reacção daqueles que não escondem uma profunda desilusão diante da opção por uma atitude realista na elaboração de um projecto de governação que se pretende naturalmente exequível. Também aqui é possível detectar uma clara propensão para o repúdio da política enquanto exercício de articulação da convicção com o compromisso, como é próprio das sociedades democrático-liberais.

Há muito tempo que tenho para mim que o principal problema das sociedades ocidentais não reside no défice de participação pública mas antes na deficiência de funcionamento dos mecanismos de decisão com a inerente desqualificação da mesma. Essa insuficiência, que a não ser remediada se revelará a prazo catastrófica, só pode ser resolvida com iniciativas como esta. Javier Cercas tem razão na preocupação que enuncia e compreende-se o cepticismo que o invade. Há razões para isso. Só que há também motivos para cultivar um optimismo realista e lúcido. Afinal de contas a política não está morta nem tão pouco a imaginação desaparecida.

2. As eleições presidenciais, que a partir de ontem entraram na agenda política do país, poderão proporcionar também o surgimento de formas inovadoras no domínio do relacionamento dos partidos políticos com as candidaturas que, neste caso, são por definição individuais. Augura-se menos comprometimento e muito mais liberdade. Essa liberdade poderá mesmo chegar ao ponto de questionar a prevalência dos eixos e categorias tradicionais de definição das fronteiras ideológicas e políticas.

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