Presidente da ERC ameaça que se demite se nova lei da cobertura eleitoral for aprovada

Projecto PSD/CDS/PS põe em causa a autonomia financeira e editorial dos media, afirma presidente do Conselho Deontológico dos Jornalistas. Direcção de Informação da Agência Lusa recusa revelar previamente o plano de cobertura da campanha.

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Carlos Magno votou contra a deliberação da ERC MIGUEL MANSO

O texto feito pelo PSD, PS e CDS ainda tem a forma de proposta, mas se foram aprovadas as novas regras para a cobertura mediática das campanhas eleitorais que exigem a entrega e aprovação prévia de planos de cobertura jornalística, o presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) demite-se.

A garantia foi dada esta sexta-feira por Carlos Magno à agência Lusa, sem mais explicações: "Com o que vi escrito sobre a lei, se ela entrar em vigor eu não serei presidente da ERC."

Na quinta-feira, o responsável pela entidade reguladora disse ao PÚBLICO desconhecer o teor do documento que foi elaborado por deputados do PSD (Carlos Abreu Amorim), CDS (Telmo Correia) e PS (Inês de Medeiros), mas admitiu ter recebido "contactos informais" sobre as negociações em curso entre os três partidos. O regulador não foi, porém, ouvido pelos partidos.

Ao PÚBLICO, Carlos Magno afirmara também não se querer "envolver mais" na questão da cobertura noticiosa eleitoral depois da má experiência de 2013 em que a ERC e a Comissão Nacional de Eleições tentaram chegar a um entendimento sobre a interpretação da lei de 1975 que exige que todas as candidaturas sejam tratadas de forma igual. As duas entidades acabaram praticamente de costas voltadas devido à falta de entendimento sobre quem deveria ter poder sobre o assunto. "A trapalhada é de tal ordem que não me quero envolver mais. Tudo isto vem fora de tempo. Fico à espera do Parlamento e depois a ERC cumprirá o que conseguir."

Carlos Magno foi convidado pelo actual Governo PSD/CDS para integrar a entidade reguladora da comunicação.

"Absurda", aponta a presidente do Conselho Deontológico dos Jornalistas
A proposta de obrigar os meios de comunicação social a entregarem com uma antecedência de até dois meses um plano detalhado da cobertura da campanha eleitoral para se sujeitar a uma validação prévia por uma comissão a ser criada é “inaceitável porque [é] absurda”, considera a presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

Realçando falar a título meramente pessoal porque aquele órgão ainda não discutiu o assunto, São José Almeida defende que “a liberdade editorial dos órgãos de comunicação social não pode ser fiscalizada, e qualquer tentativa de visto prévio, mesmo que seja só para tomar conhecimento, é uma forma de cercear a liberdade de imprensa”.

“Esta proposta põe em causa a autonomia dos órgãos de comunicação social, não só enquanto empresas [pela proposta de multas pesadas], mas também no que é a sua autonomia editorial”, acrescenta São José Almeida, que é também jornalista do PÚBLICO.

“É pena que os deputados da Assembleia da República façam um projecto de lei que colide com a Constituição no que toca à liberdade de imprensa e com a carta das Nações Unidas sobre os direitos humanos. E, mais do que isso, põe em causa um princípio basilar da democracia. Porque sem liberdade de imprensa não há democracia”, considera ainda a presidente do Conselho Deontológico.

Que ironiza ainda sobre a coincidência temporal: “É triste que [a proposta] venha a público nas vésperas do 25 de Abril porque mais parece uma piada de 1 de Abril.”

A principal novidade da nova proposta sobre a cobertura mediática dos períodos eleitorais é a obrigação de todos os órgãos de comunicação social apresentarem “planos de cobertura dos procedimentos eleitorais” a uma comissão mista que junta dois elementos da Comissão Nacional de Eleições (CNE), que preside, e um da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC), que tem de os validar, numa espécie de visto prévio.

Estes planos, que têm de ser apresentados antes de terminar o prazo para apresentação de candidaturas, devem incluir o “modelo de cobertura das acções de campanha das diversas candidaturas”, assim como a previsão de entrevistas, debates, reportagens alargadas, emissões especiais ou “outros formatos informativos” de forma a assegurar a igualdade das candidaturas. O que significa que os media terão que fazer os planos de cobertura sem saberem sequer quantos e quais os candidatos, e entre 30 a 55 dias antes das eleições.

Quem não cumprir esta obrigação ou o plano apresentado incorre em coimas até 50 mil euros, além de mil euros por dia no atraso do cumprimento, depois de notificado pela comissão mista para o fazer.

Agência Lusa recusa revelar previamente plano de cobertura
Numa nota interna enviada à redacção, a direcção de Informação da Agência Lusa “recusa liminarmente revelar previamente um plano detalhado de cobertura da campanha eleitoral, sujeito à validação de uma comissão fiscalizadora, como se quer agora determinar legalmente”.

Aquela direcção, liderada pelo jornalista Fernando Paula Brito, garante que “não aceita qualquer interferência externa nas suas competências editoriais, assegurando que manterá o respeito absoluto pelos princípios do livro de estilo da agência e das normas do Código Deontológico do Jornalista”.

Esta posição, acrescenta a equipa responsável pela Informação, já foi comunicada ao conselho de redacção e à presidente do conselho de administração da agência.

A Agência Lusa não está filiada em nenhuma das confederações do sector da comunicação social. A Plataforma dos Media Privados tem já uma posição praticamente consensual de não fazer a cobertura da pré e da campanha eleitoral se as novas regras foram aprovadas.

Nesta decisão da Plataforma participaram os grupos Cofina, Global Media, Impresa, Media Capital, Renascença e o PÚBLICO. Mas mesmo que a legislação não seja alterada, é possível que a habitual cobertura mediática acabe por ser feita numa versão reduzida, como aconteceu nas autárquicas de 2013 e nas europeias do ano passado.

Já a Confederação Portuguesa dos Meios de Comunicação Social, que integra o grupo RTP, e as associações de radiodifusão e de imprensa, disse ao PÚBLICO não conhecer a proposta, mas discordar dos princípios que se querem aplicar. Serão os associados a decidir, caso a caso, como reagir, disse o presidente, José Faustino.

"O lápis azul" ameaça regressar, avisa a Rádio Renascença
A direcção de Informação da Rádio Renascença foi ainda mais dura. Numa nota editorial publicada no site da estação, a direcção de Informação afirma que "o lápis azul ameaça regressar 41 anos depois do 25 de Abril" e que se esta proposta se transformar em lei, o sector deve apelar ao veto presidencial.

Em vez de uma nova legislação "que viesse agilizar e eliminar os constrangimentos impostos por uma interpretação maximalista de uma lei eleitoral ultrapassada", PS, PSD e CDS conseguiram criar um enquadramento legal "ainda pior do que o anterior, recorrendo à figura peregrina do visto prévio", lê-se no documento.

O plano obrigatório de cobertura de campanha é considerado "inaceitável". "Em 2015, nas vésperas do 25 de Abril, partidos do arco do Governo avançarem com uma proposta deste tipo é não entenderem o peso histórico do exame prévio, é não entenderem os valores do papel da imprensa numa sociedade democrática e livre."

A Associação de Rádios de Inspiração Cristã (ARIC), que representa mais de 60 emissoras locais, regionais e nacionais, considera "inaceitável" não ter sido ouvida neste processo e diz que a proposta "demonstra o total desconhecimento dos seus autores pela mecânica de funcionamento da informação radiofónica".

A ARIC defende que "não é aceitável num Estado democrático que os órgãos de comunicação social tenham de divulgar com antecedência a sua agenda informativa", nem que "os poderes políticos queiram limitar a [sua] participação" na cobertura eleitoral.

El País ironiza sobre liberdade de expressão em Portugal
Entretanto, a intenção dos partidos do arco da governação ultrapassou as fronteiras. O diário espanhol El País deu conta do projecto de lei puxando para título o "acordo" entre Governo e socialistas para "censurar a imprensa". O arranque do texto é assertivo em relação à forma como é encarada a pretensão dos três partidos políticos: "Portugal celebra los 40 años de libertad de expresión, pero parece que no cumplirá los 41 años."

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