Denise Stutz continua a perguntar-se

Aos 59 anos, a coreógrafa brasileira imagina tudo, menos a possibilidade de existir depois da dança. 3 Solos em 1 Tempo e Finita, as duas peças que traz este fim-de-semana ao Teatro Municipal do Porto, contam uma parte dessa história em curso, ainda muito viva.

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Denise Stutz demorou dois anos a compor Finita: os anos que se sucederam à morte da mãe RENATO MANGOLIN

Denise Stutz está “entre a emigração e a porta de embarque” quando atende o telefonema do Ípsilon sobre as duas peças que traz no avião até ao Porto, onde apresentará este fim-de-semana 3 Solos em 1 Tempo (hoje, às 15h e às 19h) e Finita (amanhã, às 21h30, e domingo, às 18h). Juntamente com Marcelo Evelin, Ricardo Alves Jr., Nayse Lopez, Priscilla Davanzo ou Tales Frey, a coreógrafa de 59 anos faz parte do contingente com que o Teatro Municipal do Porto quis mapear as novas artes performativas brasileiras e que concentrou numa semana de Foco Brasil.

Mas esse seu estado entre não é exclusivo do momento específico, parado no espaço e no tempo, em que finalmente a apanhamos, depois de um e-mail mal-sucedido: é a sua história de vida e a sua história da dança, aquela que recapitula em 3 Solos em 1 Tempo como uma experiência entre a emoção, o pensamento, a memória e a imaginação. E que ainda não terminou, ainda “continua viva”, porque caso contrário ela também estaria morta: “Se um dia eu não dançar mais, não me mover mais, é o fim: eu não existo.”

Comecemos pelo princípio: neta de avós russos, filha de pai americano e mãe brasileira, Denise Stutz cresceu entre os EUA e Belo Horizonte. Quando chegou ao Brasil, como conta em 3 Solos em 1 Tempo, ninguém a entendia porque não sabia falar português. É possível que tenha começado aí a sua história com a dança, embora só anos mais tarde, em 1972, tenha passado a integrar o Grupo Transforma, de que saiu em 1975 para fundar o seminal Grupo Corpo, antes de chegar, 15 anos depois, a outra estação fundadora da dança contemporânea brasileira, a Lia Rodrigues Cia. de Danças.

Na peça que veremos hoje, a história começa com Debussy e um par imaginário – e depois Denise Stutz começa finalmente a perguntar-se. “O 3 Solos em 1 Tempo, que eu fiz em 2008, é um apanhado da minha história mesmo. No meu primeiro solo, DeCor (2003), respondia a algumas perguntas sobre o meu percurso na dança… Todas aquelas questões dos anos 1990: porque é que você dança, quais são os seus conceitos…? Até essa primeira criação, nunca tinha pensado trabalhar sozinha – vinha de um percurso em companhias, e fui percebendo quão importante era eu escutar a minha voz, o que era difícil com muita gente à volta. Mas eu tinha outras questões sozinha. Tanto que até hoje eu continuo a trabalhar sozinha”, explica. Absolutamente Só (2005) e Estudo para Impressões (2007) foram outras tentativas de continuar a perguntar – um esforço que compilou na peça de 2008, mais um ponto de partida do que propriamente um ponto de chegada. “Na verdade a minha história não chegou a lugar nenhum, porque não terminou, está viva. Em 3 Solos em 1 Tempo eu falo de todas as minhas questões, de todos os lugares por que passei, que carreguei no meu corpo. Mas essa peça é sobretudo uma grande pergunta: eu continuo me perguntando.”

Lugar comum
Mesmo sem resposta, essa pergunta tornou-se colectiva. “É uma peça de 2008 mas que eu faço muito – mais por essa carga da história em si, da memória ali encerrada. Tem pouco a ver com onde eu estou hoje, que está nos meus trabalhos posteriores, Finita e Vislumbre – mas tem muito esse lugar comum a todos onde eu me exponho, porque não sei separar a vida da sala – ali está o meu casamento, ali está a minha separação, ali está o meu filho, ali está tudo o que me foi deixando sem chão às vezes, e que também deixa sem chão as outras pessoas. Aliás eu começo o solo perguntando: como é que eu posso me aproximar, como é que eu posso me relacionar?”.

Não é uma história linear – a da dança brasileira, e portanto a dela. “No começo”, diz em palco, “eu era muito, muito, MUITO! dramática (…); eu achava que tinha de sentir a dança, que tinha de colocar na dança todos os sentimentos”. Depois vieram os anos 1980 dos coreógrafos “inteligentes”, e Denise, sentindo-se burra, ficou “dividida”; então foi ler Grotowski e Stanislavski para perceber que “não precisava de ficar pensando nem sentindo”. Hoje, agora, neste momento, ali “entre a emigração e a porta de embarque”, Denise sente-se uma coreógrafa da emoção, do pensamento, da memória e da imaginação. “Relaciono muito a minha dança com imagens – a imaginação é o lugar onde eu estou. O meu último trabalho não tem nada, nem eu estou em cena. Mas a verdade é que só consigo ver a dança como imaginação porque pensei muito antes de chegar aqui.”

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MARTA ASPARREN

Finita, o solo a que chegou depois da morte da mãe, em 2013, é outra história da vida de Denise Stutz. Uma história de morte, das “estranhas intimidades de hospital” que a antecederam e que foi registando no blogue que, ao longo de dois anos, foi o diário de bordo do processo: “Em alguns momentos me perdi nela, me perguntei o porquê de uma existência que já não se deseja a si própria. Estou perdida no sofrimento dela (ou seria o meu sofrimento?), sem entender para onde foi a mulher que já não existe mais. Eu também estou deixando de existir e me vejo aos poucos desaparecendo dentro dela.” Já estava doente, com Alzheimer, a mulher que lhe enviou uma carta em que dizia amá-la muito – e onde perguntava porque é que “uma escritora portuguesa”, Maria Gabriela Llansol, escrevia nostalgia em vez de escrever saudade. “Essa carta da minha mãe moveu-me primeiro a fazer um vídeo sobre a memória e as coisas que já não existem mas sobrevivem como fantasmas, Para que você não esqueça. Depois é que surgiu o desejo de estar em cena, de dançar aquilo.” Trouxe uma camisa azul às riscas, um gira-discos, as suas músicas favoritas e tornou-se o reflexo do reflexo de uma mãe para sempre perdida, mas que talvez ali ela consiga reencontrar.

Parece história, mas para Denise Stutz a dança é mesmo a vida. “Eu danço porque eu não sei cantar, porque eu não sei pintar, porque eu não sou poeta., Eu danço porque se eu coloco um pouco de sentido na vida e no mundo quando eu danço, eu não consigo enxergar sentido nenhum quando não danço”, diz em 3 Solos em 1 Tempo, antes de concluir que quando pensa que um dia não vai mais dançar lhe “dói muito”. Na verdade, repete ao Ípsilon, ela “queria dançar para salvar os outros” – mas dança é para se salvar a si própria. E então depois? Depois “é o fim”, diz ela, não vai “existir mais”: “A dança é como eu sinto, é como eu penso. Faz parte da minha vida: sem a dança eu não me entendo.”

Entendido, Denise.

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