Electricista que roubou o Códice Calixtino senta-se no banco dos réus

Para além do importante manuscrito medieval, entretanto recuperado, Castiñeiras é acusado de ter roubado mais de dois milhões de euros à catedral de Compostela.

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O Códice esteve desaparecido durante um ano REUTERS/Miguel Vidal

José Manuel Fernández Castiñeiras, o electricista espanhol que em 2011 roubou da catedral de Compostela o Códice Calixtino, um importante manuscrito do século XII, vai sentar-se a partir desta segunda-feira no banco dos réus num julgamento que se espera que ajude a esclarecer as circunstâncias não só desse crime como dos roubos sistemáticos do dinheiro da catedral ao longo de muitos anos. Ao seu lado no banco dos réus estarão a mulher e o filho, acusados de cumplicidade.

Desde o início do caso que Castiñeiras, de 66 anos, foi suspeito e ficou sob vigilância policial. Antigo electricista da catedral, tinha sido despedido em 2003 por ter apresentado facturas por trabalhos que não realizara, mas mesmo depois disso continuava a frequentar o local quase diariamente para rezar – e, sabe-se agora, para roubar documentos e elevadas somas de dinheiro. Era, portanto, uma figura familiar, que se movia com toda a facilidade pela catedral e que, tendo feito cópias das chaves da caixa forte, conseguia abri-la com facilidade e em poucos minutos retirar o dinheiro.

O Códice, que foi roubado em Julho de 2011, esteve durante um ano escondido em casa de Castiñeiras. Apesar das suspeitas, a polícia hesitou em agir por recear que o ladrão destruísse o manuscrito, considerado a maior jóia bibliográfica da Galiza com um valor calculado em sete milhões de euros. Quando finalmente o livro foi encontrado, conta o jornal ABC, estava escondido numa garagem, envolto em papel de jornal, e metido numa caixa de cartão. O electricista contou depois que “de vez em quando olhava para ele para ver se tinha ganho humidade”.

Mas, para além do Códice, de dez facsímiles deste e de outros dois de um Livro de Horas, a polícia encontrou nas várias casas de Castiñeiras um total de 1,7 milhões de euros e 30 mil dólares. E ainda uma série de diários escritos pelo ladrão até 2005, nos quais este relata detalhadamente as suas actividades diárias, “tão triviais como os cafés que toma, o lugar onde estaciona, as missas e rosários a que assiste todos os dias, as instalações eléctricas que coloca, e até as suas idas à casa-de-banho”, revela o El País.

Rezar, roubar, rezar
Entre estas actividades está o saque de dinheiro da caixa-forte da catedral. “Feliz ano novo 2005. Tirei 224.970 euros, ou seja, 37.431.858 pesetas”, escreve Castiñeiras no início de 2005. E, noutra ocasião: “Vim à catedral, tirei 20.735 euros, depois contei-os, depois fui rezar.” Segundo o ABC, estes cadernos vão de 1993 a 2005, e se nos seis primeiros as anotações são apenas sobre trabalho, nos restantes começam a aparecer importantes quantidades de dinheiro, inicialmente colocadas entre pontos de interrogação, e depois tendo à frente a palavra ‘Tirei’. Há ainda balanços semestrais e anuais do saldo dos roubos.

Nos cadernos, o electricista escrevia também os locais onde escondia o dinheiro: “na mala”, “no roupeiro do escritório”, “no bolso de pôr a pistola”. Mas mesmo na sua casa, Castiñeiras, que é descrito pela polícia como muito desconfiado, tinha uma divisão, a que chamava o seu “escritório”, onde guardava parte do seu tesouro e cujo acesso estava vedado até à mulher e ao filho. Ainda de acordo com o ABC, só num cesto de papéis foram encontrados 28 mil euros em notas, e na sala de costura da mulher estava mais de um milhão de euros.

Um dos grandes mistérios que rodeia este caso é o ter sido possível que os roubos continuassem ao longo de tantos anos sem que houvesse uma denúncia. O próprio Castiñeiras terá dito à polícia que “não existia qualquer controlo sobre o dinheiro que entrava na caixa […], a facilidade de tirar dinheiro era tão absoluta que era preciso ter muita força de vontade para não tirar mais”.

Ouvidos pelas autoridades, os responsáveis da Catedral admitiram saber do desaparecimento do dinheiro mas disseram nunca o ter denunciado por recearem o impacto mediático da notícia. Um investigador citado pelo El País diz também que a catedral “não contava o dinheiro, juntava-o e mandava-o para o banco, que lhes dizia quanto tinha recebido”.

O mais curioso é que tinha sido instalada uma câmara para vigiar a caixa-forte, mas durante dois anos nunca ninguém visionou as imagens. Dizia-se que essa câmara estava avariada, e por isso o electricista nunca se preocupava com ela, mas veio depois a concluir-se que continuava a registar imagens. Quando por fim a polícia visionou os dois anos de filme, encontrou 40 vídeos em que aparece Castiñeiras entrando na sala da administração e tirando dinheiro da caixa-forte.

Espera-se que o julgamento que começa nesta segunda-feira permita fazer luz sobre os mistérios que ainda envolvem esta história. Diz a publicação especializada The Art Newspaper que serão chamadas mais de 60 testemunhas, incluindo o antigo deão da catedral, José María Díaz, e o seu sucessor, Segundo Pérez, além de outros responsáveis religiosos. Por seu lado, a defesa de Castiñeiras prepara-se para contra-atacar. O electricista já apresentou ao juiz instrutor um documento escrito à mão no qual descreve relações homossexuais, rivalidades e ódios ferozes entre os responsáveis da catedral.

A acusação pede 15 anos de prisão para Castiñeiras, enquanto a Igreja pede 31 anos, e exige a devolução de todo o dinheiro roubado: os 1,7 milhões encontrados, e mais 600 mil entretanto gastos na compra de novas casas, no que será um crime de lavagem de dinheiro, pelo qual a mulher e o filho do electricista são também acusados. 

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