Liberdade e democracia, conservadorismo e revolução

1. Fez ontem precisamente um mês, apresentei no Porto, juntamente com Francisco Assis, o ensaio Conservadorismo de João Pereira Coutinho. Cura-se de um livro exemplar a vários títulos e a demais propósitos. Muito bem escrito, com um português desafiante e atraente, marcado por doses de humor britânico e alguma ironia queirosiana, conciso e profundo, lê-se e relê-se de um fôlego só.

É um livro de filosofia política que nos ilumina sobre as origens, as correntes e as traves mestras da ideologia conservadora. Faltava na literatura política portuguesa e na nossa comunidade de filosofia política e de ciência política uma obra que se dedicasse a esta corrente de pensamento democrático da área do centro-direita e da direita. Se na política portuguesa, para as diferentes correntes de pensamento – à esquerda, ao centro e à direita – houvesse obras de referência desta cêpa e qualidade, não tenho dúvidas de que o nosso debate político seria francamente melhor e mais produtivo.

2. Não me revendo na ideologia conservadora, e muito menos no modo romanceado e fantasiado com que esta enaltece a experiência política e constitucional britânica, aprendi (e ainda tenho muito a aprender) com este livro. Sem querer fazer aqui nenhuma recensão do seu conteúdo, sempre direi – no que acompanho o comentário de Francisco Assis – que há uma larga parte que “apaixonará” todos os democratas, sejam de esquerda, sejam de direita. Porque, em rigor, ela não descreve propriamente uma característica exclusiva dos conservadores, antes põe em evidência uma predisposição de todos os democratas. Com efeito, as ideias de prudência, cautela, realismo, respeito pela opinião alheia não são um património cativo do conservadorismo. Mesmo a aceitação da imperfeição humana, a apologia da consideração das circunstâncias de cada tempo e ocasião, a defesa do reformismo e a recusa da ruptura abrupta ou da revolução não são traços privativos dos conservadores. Serão talvez mais – para usar uma afinada distinção conceptual que perpassa toda a obra – marcadores da “disposição conservadora” do que elementos da “ideologia conservadora”. Mas, como lembra o autor, é possível ter-se uma “disposição conservadora” sem se perfilhar uma “ideologia conservadora” e vice-versa. Em poucas palavras, as marcas do “fair play” no jogo democrático e de prudência e sensatez na acção política são marcas genéticas, mas não chegam a ser “momentos” diferenciadores e distintivos da ideologia conservadora. Dito de outro modo, são condição necessária, mas não suficiente, da identidade conservadora. Todos os fundamentalistas e todos os exaltados – e são cada vez mais em Portugal e na Europa – deveriam ler e absorver esta parte do roteiro conservador tão cuidadosamente tratada naquelas linhas.

3. Onde julgo ter uma divergência de fundo – histórica, mas com cavadas consequências para a actualidade – é na asserção de João Pereira Coutinho de que o conservadorismo (britânico) nasceu essencialmente da crítica à revolução francesa e à sua dinâmica fundadora (ou refundadora). Sendo, como é, um grande especialista em Edmund Burke, faz remontar o nascimento da ideologia conservadora ao pensador irlandês e à sua crítica oportuna e visionária da revolução em França.

Ora, a meu ver, a origem do conservadorismo britânico não está na contestação ao “voluntarismo político” da revolução francesa, mas sim na resistência à instauração do absolutismo no século XVII inglês. Posto em modo simplista e intencionalmente enganador: o conservadorismo deve mais à revolução inglesa do que à revolução francesa. Entendendo-se, claro está, por “revolução inglesa”, não o momentum da “Glorious Revolution” de 1688, mas todo o conflito do século XVII entre a vontade dos Stuarts de abraçar o absolutismo (à época modernizador e triunfante) e a obstinação dos corpos sociais e intermédios em perpetuar a velha ordem medieval. O século XVII inglês é uma reacção: uma reacção à tentativa de Tiago I e de Carlos I de instaurar um regime absoluto É esta reacção que impede a criação de um Estado moderno e que possibilita a sobrevivência da ordem medieval, do seu pluralismo social e das suas instituições. É justamente este movimento reactivo que forja e molda o espírito conservador e que permite manter, nas ilhas britânicas, um arejamento de pluralismo e de liberdade que contrasta com o absolutismo reinante no continente europeu.

4. Só que a conservação destas margens de liberdade – a “liberdade moderada” de que falará Montesquieu a propósito da constituição inglesa – tem um preço e uma contrapartida: a desvalorização da igualdade. Não deixa de ser revelador que o livro aqui citado fale recorrentemente em liberdade, mas quase não dedique atenção ao tema da igualdade.

É que aquela sobrevida da ordem medieval, possibilitada pela recusa do absolutismo (e do seu efeito nivelador), vai perpetuar a ideia de desigualdade de nascimento e preservar a aceitação “natural” da diferença e da assimetria social. O que é evidente ainda hoje no tecido social britânico, mas facilmente se demonstra pela longevidade de uma instituição como a Câmara dos Lordes (pelo menos até à reforma Blair). Um parlamento cuja divisão em duas câmaras assentava num critério de extracção social, marcadamente hereditário inscreve-se expressamente na tradição que compôs as cortes, as dietas e os estados gerais da Europa medieval. Será decerto propiciador de liberdade, mas representará a negação da igualdade. Pode integrar um regime liberal, mas dificilmente constituirá um regime democrático…

5. Vem tudo isto a propósito daquele excelente livro e da reflexão sobre a liberdade. A formação de uma corrente conservadora forjou-se na luta pela liberdade contra o absolutismo seiscentista e setecentista. E não na luta contra a revolução francesa. A revolução francesa não gerou o conservadorismo. E, já agora, João Carlos Espada, também não foi funesta: deu à igualdade o status de étimo da democracia.

 

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