Dia grande para o documentário em Locarno com L'Abri, de Fernand Melgar

Melgar mostra seis meses na vida de um abrigo social, Masa Sawada e Bertrand Bonello filmam um kamikaze que sobreviveu. Dia grande para os documentários no Festival de Locarno.

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Em "L'Abri" Fernando Melgar acompanha um inverno num abrigo de Lausanne, mostrando de um lado o quotidiano dos emigrantes que sobrevivem como podem durante o dia esperando pela cama
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"Parole de Kamikaze" dá rosto aos temidos pilotos suicidas japoneses da II Guerra Mundial. Ou, no caso, a um deles, Fujio Hayashi, voluntário da divisão Ohka

As palavras que se seguem são de um sem-abrigo senegalês em Lausanne. São registadas pela câmara do documentarista suíço Fernand Melgar no seu mais recente filme, L'Abri, exibido ontem no concurso internacional do festival de Locarno.

"O que vi aqui é desumano. Para não dormires na rua, passas duas horas ao frio, e tens de pagar cinco francos. Não tens meios para almoçar nem papéis para trabalhar. Sou sério e honesto, não quero pedir nem roubar, mas o sistema suíço não te quer aqui. Fazem de propósito para te desencorajar, para te levar a abandonar o país."

Não são palavras ditas para a câmara, mas sim para um outro emigrante africano, em jeito de desabafo: viemos para aqui em busca de uma vida melhor, porque é que não nos deixam encontrá-la? Essa tem sempre sido a batalha do cinema de Melgar, ele próprio filho de emigrantes catalães na Suíça, cujos documentários anteriores - La Forteresse ou Vol Spécial, ambos exibidos no DocLisboa - exploravam o quotidiano da emigração ilegal e do seu processamento pelo sistema social suíço. Aqui, Melgar acompanha um inverno num abrigo de Lausanne, mostrando de um lado o quotidiano dos emigrantes que sobrevivem como podem durante o dia esperando pela cama, mesa e roupa lavada da noite, do outro as decisões que têm de ser tomadas pelos responsáveis que procuram fazer o que podem com o que têm. Ambos, e as suas boas intenções, esbarram na burocracia cega de um sistema onde tudo é feito de acordo com regras e leis abstractas que, em nome de princípios de igualdade e fraternidade, esquecem demasiadas vezes estarmos em presença de seres humanos que buscam uma vida digna.

Fluxo constante
De certo modo, Melgar pratica um cinema da transparência, que observa o modo como o sistema, ao procurar ajudar, apenas desumaniza ainda mais. Os cartões de acesso que na prática pretendem garantir estadia aos sem-abrigo acabam por criar mais uma  "divisão de classes"  entre quem os tem e quem os não tem, e reflectem igualmente como o próprio sistema está à beira da ruptura, incapaz de absorver a quantidade de pessoas que vêm em busca de uma vida nova. 

Do lado dos sem-abrigo, há quem resmungue por "escolherem sempre os mesmos" para pernoitar, quem invoque um qualquer racismo preferencial ("os europeus estão todos lá dentro, os africanos ficam todos cá fora"). Do lado de quem trabalha no abrigo, há quem resmungue por não os deixarem acolher mais gente, quem proteste com o chefe porque em vez de investirem nas condições prefere-se investir em cartões de acesso que supostamente simplificam a burocracia mas na verdade não resolvem o problema central. 

A transparência do cinema de Melgar implica, forçosamente, não tomar partido por um lado nem por outro, numa estratégia de "fluxo constante", de ida e volta, que se afadiga em mostrar como, de ambos os lados da barricada estamos a falar de gente de carne e osso. Há a família romena que vive de mendigar nas ruas enquanto os filhos estão num salão de jogos, que dormem no carro quando não têm lugar no abrigo; há o empregado do abrigo que diz "nós não somos estúpidos" e recusa a entrada a um romeno que usa um bebé para tentar entrar, mas que discute violentamente com o chefe para conseguir que entrem mais do que os 50 que podem acolher durante as noites de inverno. 

O maior mérito do documentarista suíço é o de olhar para as coisas na sua enorme complexidade, sem as resumir à demagogia nem à banalidade, mesmo correndo o risco da ambiguidade. Dito isto, é verdade que L'Abri é talvez o seu filme com mais "personagens", com uma construção narrativa que o aproxima dos actuais "cinemas do real" no modo como acompanha a vida desta gente durante o dia, fora do abrigo. É um filme que sai da "bolha" (dos centros de detenção onde rodou anteriormente, por exemplo) e se abre à cidade e aos percursos pela cidade, mas sem perder de vista que é, sempre, de gente que se está a falar.

O kamikaze que sobreviveu
É também de gente que se fala no filme do japonês Masa Sawada, Parole de Kamikaze (fora de concurso), que dá rosto aos temidos pilotos suicidas japoneses da II Guerra Mundial. Ou, no caso, a um deles, Fujio Hayashi, voluntário da divisão Ohka - Ohka designando pequenos aparelhos sem motor,  "bombas voadoras" cujos pilotos se limitavam a dirigir o leme para se atirarem contra alvos navais. Mostrado no dia em que se marca o bombardeamento de Nagasaqui, Parole de Kamikaze está formalmente no oposto do cinema de Melgar: é, essencialmente, um testemunho filmado em longos planos fixos, pontuados por silêncios durante os quais Hayashi, que sobreviveu porque a guerra acabou antes de ser enviado em missão (mas durante a qual enviou dezenas de subalternos e amigos para a sua morte), recorda esses anos de juventude. 

É, coisa estranha, um filme "sem autor", como se quem o fez quisesse apenas servir de veículo para uma memória que corre o risco de se perder: Hayashi tenta há mais de 50 anos colocar no papel as suas memórias, num livro a que quer chamar Voluntário para o Suicídio mas que na realidade não consegue terminar. Masa Sawada, produtor japonês há muito radicado em França, é o realizador nominal, mas foi Bertrand Bonello, em presença de Sawada, a dirigir a rodagem da entrevista. Mas talvez seja essa a chave do sucesso de Parole de Kamikaze: pouco interessa quem o filmou, o importante é que a história de Hayashi, as certezas e as dúvidas daqueles que durante muito tempo foram entendidos apenas como fanáticos suicidas, seja contada. É, como L'Abri mas de outro modo, uma experiência da qual não se sai incólume, mesmo pelo meio da velocidade de um festival de cinema.

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