Pedro Lacerda: “A estrutura global deste cometa, que parece consistir em dois corpos encostados, é inesperada”

Falámos com o astrofísico português Pedro Lacerda, do Instituto Max Planck para a Investigação do Sistema Solar, na Alemanha, no dia em que a sonda Roseta chegou junto do cometa que vai estudar.

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O astrofísico português Pedro Lacerda, que trabalha na Alemanha DR
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O núcleo do cometa revelado pela sonda Roseta: “É surpreendentemente irregular”, diz Pedro Lacerda ESA

O astrofísico português Pedro Lacerda, de 39 anos, lidera um grupo de ciência cometária no Instituto Max Planck para a Investigação do Sistema Solar, em Göttingen, Alemanha. Estuda sobretudo objectos transneptunianos, ou seja, na região para lá de Neptuno onde os cometas se conservam e de onde partem de vez em quando em direcção ao Sol. Os dados da sonda Roseta, que chegou esta quarta-feira junto do cometa 67P/Churiumov-Gerasimenko, agora entre Júpiter e Marte, permitir-lhe-ão perceber melhor como se formam os cometas e como evoluem quando o Sol provoca a sublimação do seu gelo, que passa directamente do estado sólido ao gasoso. O que a Roseta nos mostrou já o espanta.

Nas imagens captadas do cometa pela sonda Roseta após o encontro entre os dois, há algum aspecto que já o tenha surpreendido?
O nível de detalhe que as imagens de hoje [ontem, quarta-feira] mostram é impressionante. Além da forma global ser surpreendente, os pormenores que nos chegam são fantásticos. Escarpas muitíssimo pronunciadas, contrastando com regiões extremamente suaves, salpicadas de blocos aparentemente intactos. A estrutura global deste cometa, que parece consistir em dois corpos encostados, é inesperada. A expectativa era de um bloco, irregular mas único. Por outro lado, pode ser que o cometa seja mesmo um corpo único que sofreu erosão na região central devido a uma maior taxa de sublimação de gelo. Nos próximos meses saberemos.

Como cientista que estuda cometas, o que tem de especial esta missão?
Esta missão tem duas características muito especiais. Em primeiro lugar, a sonda vai permanecer em torno do cometa durante pelo menos metade da sua órbita, estudando em detalhe a fase de aproximação ao Sol, em direcção ao periélio (ponto mais próximo do Sol), e depois a fase em que o cometa se afasta do Sol até chegar ao afélio (ponto mais distante do Sol e mais frio da órbita). Este acompanhamento vai permitir estudar o mecanismo que dá origem à actividade dos cometas, que leva à formação das famosas caudas que caracterizam estes astros.

Na aproximação ao Sol, o cometa aquece e a taxa de sublimação de gelos de água, monóxido e dióxido de carbono aumenta vertiginosamente, arrastando poeiras num processo que não entendemos de todo. Este processo altera a superfície do cometa de um modo também desconhecido. Depois, à medida que o cometa se afasta do Sol e arrefece, a actividade diminui e é possível observar as alterações produzidas na superfície, forma, e estado de rotação do objecto.

Em segundo lugar, a missão, para além da sonda Roseta que permanece em órbita em torno do cometa, transporta uma sonda mais pequena (chamada File) que vai aterrar na superfície e literalmente esgaravatar o solo (para explorar a estrutura do material), cheirar os gases que emanam do astro para estudar a composição química e, em conjunto com a Roseta, passar ondas através do cometa para fazer uma espécie de radiografia. Isto são tudo coisas que nunca fizemos, nem de perto nem de longe.

O que se espera aprender sobre os cometas com a missão da Roseta que ainda não saibamos?
Temos que compreender o mecanismo que dá origem à actividade cometária. Como é que o cometa ejecta tanto material para o espaço que dá origem às caudas que vemos da Terra, e aos trilhos de material que ficam para trás em órbita e que produzem estrelas cadentes quando a Terra os intersecta. Sabemos que tem a ver com a sublimação de gelos, mas que gelos, em que proporção e como é que esse processo arrasta tanto material? Também temos que explorar a composição química do cometa. Quão complexas são as moléculas que estes astros transportam? Que parte da longa caminhada química que vai das estrelas até à origem da vida na Terra acontece nestes objectos tão pequenos mas tão abundantes?

O que o deixaria espantado?
A superfície já me espanta – é surpreendentemente irregular. Mas ficaria muito espantado se os dois blocos que parecem formar o cometa fossem muito distintos. A minha expectativa é que são mesmo dois blocos que se formaram muito perto um do outro – e como tal são semelhantes – e que se juntaram muito cedo no nascimento deste objecto.

Por que é importante estudar os cometas?
Os cometas são as peças de Lego que a natureza usou para formar os planetas. Se queremos perceber como nasce um planeta temos que estudar cometas. Depois disso, a Terra foi intensamente bombardeada por cometas há quase 4000 milhões de anos. Muito provavelmente esse bombardeamento trouxe água e matéria orgânica. Vamos agora, finalmente, perceber que qualidade de água e que tipo de matéria orgânica. É de novo a questão do trajecto químico que vai das estrelas até à vida.

Viajámos com uma sonda até a um cometa e, em Novembro, vamos lá aterrar com um pequeno módulo e esmiuçá-lo ainda mais. Esta missão parece-lhe saída de um filme de ficção científica ou já nem por isso?
Continuo a achar muito mais impressionante termos posto dois homens na superfície da Lua em 1969. Não quero retirar nenhum mérito a esta missão Roseta – é fantástica. Mas numa era em que, caminhando numa rua no Japão, tiro um aparelho do bolso que não está ligado a nenhum fio, dou uns toques na sua superfície de vidro e vejo a cara e converso com um familiar querido em Portugal ao vivo é mais difícil ficar surpreendido com estas coisas. Estamos mal habituados nos dias que correm. A tecnologia actual, se recuarmos uns anos, parece ficção científica. Agora imagine o que deve ter sido por pessoas na Lua em 1969. Mas eu não era nascido.

Que importância vai ter aterrarmos mesmo num cometa pela primeira vez, em Novembro próximo?
Não há nada como escarafunchar para aprender como funciona uma coisa. É assim que as crianças aprendem sobre o mundo que as rodeiam. A tocar em coisas, apertando, arranhando, sentindo. Este aterrar será o mais próximo que vamos estar de um cometa.

Por que é que os cometas, que já assustaram tanto as pessoas, ainda nos fascinam tanto?
Por que são objectos imprevisíveis! O cometa define-se pelo seu aspecto despenteado e frenético. E talvez as pessoas intuitivamente saibam que os cometas, além de serem astros com muita vivacidade, podem ter sido muito importantes para a origem da vida.

Como imagina o núcleo do cometa? É muito escuro? É mole, duro? É muito diferente da ideia vulgarizada de uma bola de gelo com poeiras?
Que é escuro já sabemos, mas porquê não temos ideia. A expectativa é que seja mole (de constituição fraca), senão seria difícil que a sublimação “levantasse tanta poeira”. Mas parte da solução pode estar na maneira como a poeira e o gelo estão misturados. Vamos ver o que nos diz a Roseta e a File.

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